A solidão própria do Natal

Crónicas 26 dezembro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Uma das mais belas correspondências de Natal que conheço é a que o poeta Rainer Maria Rilke manteve com a mãe, ao longo de 25 anos. Claramente as cartas de ambos deveriam ser escritas e recebidas antes da festa. A mãe, Sophia Rilke, residia estavelmente em Praga, mas Rainer Maria era uma espécie de apátrida espiritual, girovagando por refúgios de empréstimo, em França, Itália, Alemanha, Espanha, Rússia, Suíça. A distância geográfica ou as dificuldades de comunicação não os impediram, porém, de manter, por longo tempo, um ritual preciso, cheio de ressonâncias: às dezoito horas em ponto de cada dia 24 de dezembro, quando as mil luzes natalícias brilham mais ainda como que intensificadas pela chegada do último crepúsculo antes da grande festividade, eles finalmente abriam, com viva e lentíssima emoção, a respetiva carta natalícia. Numa dessas missivas, o poeta explica em detalhe o cúmplice processo de escrita, definindo-o como uma comum experiência de gestação da alegria. Escrever a carta, antecipando o efeito que ela causaria no correspondente; selecionar as palavras, o papel, as imagens, os sons e as cores; calcular exatamente os tempos que garantiam a chegada ao destinatário — tudo era uma excitante pré-alegria que deixava o espírito em alvoroço até à vigília, quando o relógio batia as dezoito horas.

 

Contudo, o traço porventura mais surpreendente desta correspondência é que ela constitui um ensaio sobre aquela solidão que experimentamos no Natal, e que exploramos tão pouco. Há uma desaceleração interior que, por desconfortável que possa ser, constitui uma oportunidade para entrar dentro do próprio coração. E o coração, mesmo no seu quebrantado pulsar, mesmo no seu doloroso esvaziamento, é, como escreve Rainer Maria Rilke, “uma ilha de Deus, uma filial do céu”. A solidão própria do Natal vem descrita como uma irrevogável chamada ao recolhimento. É bom sentir que tudo em nosso redor, e que nós próprios, de repente, nos aquietamos. E que as horas se tornam pacatas, entreabertas e misteriosas num modo que nos é inabitual, para não dizer desconhecido, porque “o infinito nos quer assim surpreender”. É bom sentir que o vazio que se sobrepõe a todos os embrulhos que trocamos e que o silêncio interno que fala mais alto que o vozear querido que nos circunda têm, sem compreendermos como, a forma de um dom.

 

Esse vazio, que resiste à avalancha de consolações que recebemos, é, de facto, o verdadeiro dom: a possibilidade não de desejar isto ou aquilo, mas de provar a explosão de um desejo em estado puro, em grau tal que só o podemos abandonar nas mãos de (um) Deus. O resto, sim, são as circunstâncias externas, provisórias e passageiras. O poeta insiste em falar à mãe das vantagens desse máximo recolhimento perante “o antigo, o santo esplendor da soleníssima vigília”. E escreve: “Devemos permanecer silenciosos e solitários e pacientes para acolher em nós a graça de uma hora que a muitos não cega a revelar-se, porque neles há demasiado rumor e uma escassa ordem. Tudo depende, afinal, de aprender a ligar-se àquilo que é grande, àquilo que vivemos apenas no coração e que nada pode turbar. Se nestes momentos de grande recolhimento e elevação compreendemos que a vida está naquilo que, palpitante e solene, se move em nós e nos deslumbra com lágrimas que brotam do profundo mais luminoso, então a modesta confusão que nos circunda ainda, o ordinário e o turbulento que corre não poderão já fazer-nos desanimar.” Talvez precisemos de abraçar a solidão de que facilmente fugimos, pois nela, e de uma maneira carregada de prodígio, acontece o Natal.

 

SEMANÁRIO#2408]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail