«Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem»
São muitas as passagens do Evangelho que me obrigam a fazer silêncio e a parar. São muitas mesmo, para não dizer todas. Algumas pela densidade teológica, como por exemplo, muitas passagens em S. João. Outras, pela clareza da limpidez de Jesus diante da humanidade. E umas poucas por implicarem uma reviravolta de entranhas, na dificuldade do que é pedido. "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem", é destas últimas, que ainda mais caracteriza algo muito específico do cristianismo.
Aqui damos de frente com o cúmulo do Amor de Deus. A aparente impossibilidade é logo desmascarada com a simplicidade do “faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre os justos e injustos”. Estamos perante o Pai que não selecciona pessoas para a sua dádiva de amor. Isto baralha. De instinto, ante os inimigos, parece que é natural e justificado deixar o ódio desenvolver, tentando eliminá-los. No entanto, a humanização em caminho de divinização, implica ultrapassar o instinto. “Apesar de tudo, quero que o outro, mesmo sendo meu inimigo, seja”, seria, parafraseando Gabriel Marcel, uma definição de amor.
Entende-se que o amor visto desta forma não é lamechice pegada, de beijinhos e abracinhos, como se, de repente, tivesse de tornar os meus inimigos como melhores amigos. Isto seria ridicularizar o embate forte de tudo isto. “Amar os inimigos” implica entranhar-me, a partir dessa oração que Sto. Inácio de Loiola nos convida a fazer nos Exercícios Espirituais, de ter e viver o conhecimento interno de Jesus para mais o amar e seguir. Então, apercebemo-nos que, por exemplo, em S. João, Jesus não se cala diante da injustiça e dos seu inimigos, revelando o amor a partir do questionamento. Quando leva a bofetada replica, não em violência, mas na questão que aponta à reflexão e conversão: “Se falei mal, mostra onde; mas, se falei bem, porque me bates?” Diante desta cena, imagino o diálogo a continuar: “O que te leva a bater-me, ainda mais quando tens capacidade para pensar e reflectir por ti? Queres estar submisso à tua aparente valentia de poder? Ou simplesmente imitas o caminho mais fácil, quando os poderes político e religioso são postos em causa ao se mostrar a dignidade de todos, em especial os excluídos e oprimidos?”
Pois, os mandamentos resumidos deixam de ter cargas morais, para se alicerçarem em existência relacional a partir do Amor: “Amai os inimigos”; “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”; “amai ao próximo como [se amam] a vós mesmos”. Isto não é simplismo, é densidade no caminho de compreensão de amor próprio (e tanto que falta no mundo) e do amor de Deus, nessa relação com o próximo (que nos remete à parábola do Samaritano). Por isso, a reviravolta de entranhas, muito ligada ao sentido da compaixão, faz como que o caminho de conversão implique o amor à luz e à sombra pessoais, nesse admitir com o mais verdade e coragem possíveis que tanto posso ser perseguido como perseguidor. Se desejo essa aproximação a Jesus, farei os possíveis para atrever-me a entrar, com Ele, na minha escuridão e aí levar a Sua luz. Esse exercício de conversão, podendo ser doloroso, é libertador… permitindo ver que nem o sol, nem a chuva, são do meu domínio, deixando, assim, o julgamento para Deus que simplesmente Ama. E isto, apesar de difícil de compreender, revela o Senhor da Vida.
[Foto: Davorin Volavsek]