Num avesso do mundo
Nenhum de nós sabe realmente que tem tudo até ser confrontado com o Nada. Todos tratamos por tu a pobreza, a miséria, a tristeza e até a morte. Achamo-nos conhecedores de tudo o que se passa mundo fora, só porque este nos entra casa adentro todos os dias, enquanto pousamos os talheres do jantar. Mas não. Não conhecemos nada até aterrarmos num lugar onde o Nada é tudo. Quando se chega ao avesso do mundo, o coração abre a boca de espanto e esconde-se como uma criança. Não se prepara coração nenhum para receber o Nada. O corpo, esse, empequenece. Reduz-se. Retira-se. Há avessos que não são para o corpo. Quase nem são para a alma. Depois do choque, o corpo volta a pertencer-nos e começamos a processar lugares, ruas, rostos, sons, cheiros, sorrisos, expressões. A alma começa a bater mais forte que o coração e encontramos em nós lugares que não sabíamos que tínhamos. África. Uma palavra tão pequenina que ecoa em nós como um leão. Não há comida suficiente. Não há água suficiente. Não há condições suficientes. Nada é suficiente. E, de repente, percebe que é a partir do Nada que nasce a alegria. A esperança. Uma esperança despida de futuro. Uma esperança simples que emociona, que derruba pela sua pequenez. De repente, para ter tudo não é preciso nada. As crianças brincam na mesma, sem nada. A vida continua na mesma, sem nada. As ruas continuam cheias, mesmo sem nada. No avesso do mundo todos os braços estão abertos para receber com alegria, ainda que a vida não seja nenhum motivo para sorrir. Em África, até a partir das tristezas se dedilham canções e se erguem batuques. De tudo se pode fazer alegria. Basta querer. E, quando não se tem nada, é fácil moldar alegria a partir de qualquer coisa. No avesso do mundo as crianças correm descalças, brincam numa lixeira que arde permanentemente e que, por ser tão grande, esconde o sol; dormem debaixo do céu e não têm cama; têm SIDA; têm fome. Mas, dentro da alma que, de tão grande, se faz transbordar do corpo, são inexplicavelmente felizes. E, subitamente, o abandono e o avesso são transformados no mais precioso de todos os lugares.
N’O reino do Nada
Nasces com o dia. Como o dia.
Levas o sol debaixo da tua pele.
O teu peito ferve alegrias
E as tuas mãos engordam de histórias
Que também fazes crescer em mim.
O dia leva-te pela mão
E a estrada de poeira aligeira os teus passos
Feridos, esburacados, incompletos, moribundos.
Mesmo quando a morte apanha boleia contigo,
Servindo-se do teu corpo magro e entorpecido,
Tu és luz para mim
Que até agora vivia às escuras do teu mundo.
Maputo, Agosto de 2014
[Fotografia: Marta Arrais]