Volto já

Volto já. É isto que vamos dizendo e mostrando a quem se atreve a passar por nós. Queremos o descanso de uma vida com poucos distúrbios. Queremos que ninguém se atreva a incomodar-nos. Vivemos cada dia com a pressa de lhe adivinhar o fim. Vivemos à espera de coisas que não temos. Esperamos pessoas e acontecimentos que nunca vamos ter. Não queremos ter trabalho. Queremos uma estrada já feita e alcatroada de facilidades. Queremos que nos calcem os passos certos e que a vida não nos ponha a prova. Volto já. Escapamos do que devíamos viver porque não temos coragem para nos enfrentar. Não temos coragem para olhar para o espelho que somos e ver como somos feios. Parecemos bonitos, mas sabemo-nos feios. Sabemos que dizemos uma coisa e fazemos outra. Sabemos que devíamos ficar mais um pouco e viramos costas. Sabemos que temos que dizer a verdade mas mentimo-nos. Construímos para nós uma espécie de paz podre e pobre. Que não é paz nenhuma. É só uma miragem. A paz é coisa para demorar a fazer e nós somos pessoas do imediato. Do para-ontem. Do temos-pena. Volto já. É isto que dizemos quando a vida chega para nos dar coisas boas. Juntamos as mãozinhas antes de dormir e rezamos muito. E quando Deus chega para nos dar o que pedimos temos o real descaramento de dizer isso mesmo. Volto já. Desperdiçamos tudo. Trabalhamos a pensar nas férias e vivemos as férias a pensar no trabalho que nos espreita. Volto já. Coragem verdadeira para fechar a porta? Não temos. Delicia-nos o impasse, o não saber, o indefinido, o suspenso. Não vivemos nada. Estamos aqui a pensar no que já passou e no bom que era o que já passou. Estamos aqui a viver o que se está a passar com os olhos postos no que já não existe. Haja paciência para nós. Que vivemos o que podia ter sido, a possibilidade da perfeição. Somos feios. A nossa alma tem dentes podres e é míope. Por fora estamos compostos. Cuidamos do que está à vista com medo de ser vistos. Volto já. Agora não posso dedicar-te a minha vida porque me apetece comer uns restinhos do passado. Volto já. Agora não posso chorar. Talvez outro dia. Volto já. Agora não posso abraçar-te. Talvez outro dia. Volto já. Agora não posso ajudar-te. Talvez outro dia. Volto já. Agora não posso viver.

 

Talvez outro dia.

Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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