As remessas dos filhos emigrados

Os filhos emigrados dão-nos lições todos os dias. Aprendemos a perder medos, a confiar mais e a treinar a liberdade interior. A abertura a que a geração Erasmus é obrigada exige de nós o nosso melhor.

 

Vésperas de vésperas. O Natal a chegar e os filhos a voltarem a casa, para estarem com a família. Muitos vêm de países remotos, alguns moram em cidades com nomes impronunciáveis, uns estudam, outros trabalham. Vivem fora do país onde nasceram e cresceram, mas habituam-se depressa a outras latitudes e às diferenças. São portugueses e basta. Aliás, são conhecidos por serem sempre capazes de se desenrascar. Adaptam-se à adversidade com facilidade e seguem em frente, revelando talentos e competências nunca vistos em casa.

 

Antigamente eram os pais que partiam e os filhos que ficavam, mas agora essa realidade inverteu-se e as mães, os pais, os avós e até os irmãos espantam-se com a aparente destreza com que os jovens que vão para fora passam a gerir sozinhos o seu dinheiro e as suas vidas. Da noite para o dia começam a tratar das suas roupas, cozinham as suas próprias refeições e fazem tudo como nunca fizeram no tempo em que moravam com a família. Saem completamente da sua zona de conforto e trocam o seu canto, no seu quarto, por uma parte de casa partilhada com estranhos.

 

Vivem situações inesperadas e sujeitam-se a regras inauditas nos países de destino. Alguns passam a ter que contar os banhos, outro pagam por duches extra tomados em condições extremas, há quem só possa mudar a roupa da cama uma vez por mês e até há quem tenha que sair de casa e atravessar uma rua para poder ir à retrete. Em Portugal seria impossível ver estes jovens fazerem metade daquilo que fazem lá fora, mas habitualmente os jovens não se queixam. Muito pelo contrário! É raro não conseguirem dar a volta por cima das situações mais incómodas ou absurdas, e só no limite admitem que talvez seja melhor voltar. Também acontece.

 

A geração Erasmus surpreende pela plasticidade com que reage aos estímulos, mas também pela criatividade com que responde aos desafios. Rapazes e raparigas de todas as origens e condições aproveitam milimetricamente as oportunidades, lançam-se à aventura e atiram-se para fora de pé. Chegam ao outro lado do mundo com a mesma facilidade com que apanhariam um comboio para passar férias com amigos e inauguram ciclos de vida em lugares onde não conhecem absolutamente ninguém. Muitos nem sequer falam a língua dos países para onde emigram e onde permanecem durante meses ou anos, mas não se atrapalham nada. Mais, a esmagadora maioria destes jovens volta radicalmente diferente. Quando chegam a casa dos pais, passados meses, parecem outras pessoas. Mais preparados, mais adultos, mais maduros, muitos mais felizes e realizados e, por isso, mais capazes de encontrarem ou disputarem o seu lugar no mundo.

 

Os pais ficam na retaguarda e graças ao Skype, FaceTime, Whatsapp e afins, vão mantendo a proximidade. Curiosamente muitos pais descobrem (ou re-descobrem) os seus filhos neste tempo em que eles moram longe. As saudades traduzem-se em conversas mais profundas e porventura até mais elevadas. Ou seja, pais e filhos elevam-se acima das suas circunstâncias para encontrarem novos patamares de entendimento. Em casa, nos velhos tempos, as conversas foram muitas vezes tensas ou monossilábicas. Não sobravam horas nos dias para se sentarem uns com os outros, e muitas vezes nem tempo havia para estarem juntos à mesa. Aos olhos dos pais, casados, divorciados ou re-casados, a adolescência nunca foi nem será a idade se ouro dos seus filhos, e atravessam esses anos mais ou menos erosivos a pensar na idade que se segue.

 

O problema é que hoje em dia os filhos ficam autónomos muito mais cedo e essa idade tão desejada pode já não ser vivida em casa dos pais. Muitos jovens têm a sua primeira vivência no estrangeiro pouco depois da adolescência. Vão para a China, para a Austrália, para a Argentina ou para o Japão com a mesma facilidade com que nós, pais, atravessávamos a ponte ou apanhávamos o autocarro para ir à praia. Nós voltávamos no mesmo dia ou passadas poucas semanas, quando estávamos de férias, mas eles podem ficar meses a fio nessas latitudes.
 
Antes de cumprirem vinte anos já passaram por muitos lugares desconhecidos, reais e virtuais. Já navegaram por toda a parte e já deram muitas voltas ao mundo, pois tudo para eles está à distância de um clique. Quando partem e verdadeiramente se distanciam, é como se o estrangeiro não lhes fosse estranho. Sentem-se em casa em quase todos os continentes e isso não deixa de ser extraordinário. Para nós, pais, reservam umas linhas no mail, uns vídeos breves e sempre muito impressionistas, gravados com os smartphones, ou uns minutos por dia para conversas com e sem imagem. Passamos a ser visitados desta maneira e por incrível que nos pareça, conseguimos sentar-nos à mesa ao mesmo tempo, ainda que entre nós e eles possa haver 12h de diferença.
 
Os filhos emigrados dão-nos lições todos os dias. Aprendemos com eles a perder os medos, a confiar mais e a treinar a liberdade interior. O desprendimento e a abertura a que esta geração Erasmus é obrigada, também exige de nós o nosso melhor. Temos que saber estar na retaguarda e, ao mesmo tempo, descobrir formas dinâmicas e originais para continuarmos a ser pais e mães com ascendente, influência e, porque não dizer, autoridade perante filhos que moram a distâncias oceânicas.

 

Nada disto é fácil para ninguém. Custa dinheiro, exige sacrifícios de parte a parte e obriga a descobrir novas maneiras de viver em família. Mas compensa. Compensa tudo, especialmente porque sabemos que nenhuma história de sucesso individual aconteceu sozinha. Foi precisa toda uma rede de apoios e foi necessário cultivar um sentido de pertença.

 

Os jovens partem com mais alegria e facilidade se sentirem que têm uma boa retaguarda familiar (não necessariamente financeira, note-se!), mas sobretudo de apoio moral e emocional. Muitos ‘viram-se’ para ganhar o dinheiro necessário para poderem ir estudar e viver fora, sem dependerem de ninguém, mas é vital ter um suporte afectivo. Há quem não possa ter os pais na linha de apoio, mas até estes jovens sabem encontrar entre os professores, os tios ou os amigos as suas figuras de referência. Para não falar do reforço dos laços que estabelecem entre pares, com outros universitários nas escolas e cidades onde passam a viver.
 
Esta semana, que agora começa e antecede o Natal, marca um tempo particularmente feliz para os pais e mães que têm os filhos a viver fora. Estão todos a voltar, alguns já aterraram em casa, e tal como as remessas que outras gerações trouxeram ao país, também estes jovens nos acrescentam ouro com a sua presença, mas também com as remessas de conhecimento, de abertura ao mundo e atitude de superação que trazem consigo. Tudo isto, mais a sua capacidade de integração e esse indefinível talento para desfazer barreiras e unir pontos soltos nos enche de certezas para o futuro. Longe de casa e mesmo sem se darem conta, constroem no mundo uma casa comum.

 

[©Laurinda Alvez | Observador]

 

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