DEUS
Digo muitas vezes que, sobre Deus, faz-nos bem a nós crentes escutar os não-crentes. E posso dizê-lo por mim próprio
No prólogo do Evangelho de São João, que os cristãos ouvem proclamar na liturgia do dia de Natal, diz-se que “a Deus jamais alguém o viu” (Jo 1,18). E a mesma coisa na primeira epístola de São João: “A Deus nunca ninguém o viu” (Jo 4,12). O poeta católico Charles Péguy, dirigindo-se a Deus, pronuncia-se assim numa das suas odes: “Tu recordas-me esse grande silêncio que o mundo tinha, antes que tivesse início o reino do homem. Tu anuncias-me esse grande silêncio que o mundo terá, quando terminar o reino do homem”. É verdade que não sabemos a forma de Deus. Tanto crentes como não-crentes, bebemos o silêncio de Deus nas próprias mãos. Deus não é manipulável, domesticável por discursos e representações. A tradição bíblica, quer judaica quer cristã, é muito escrupulosa em manter a indizibilidade de Deus. “Porque perguntas o meu nome?”, respondeu Deus ao pedido feito pelo patriarca Jacob para que se autonomeasse (Gen 32,30). Deus escapa-nos, é sempre Outro, ultrapassa o que possamos conhecer dele. Deus é Deus e isso coloca-nos perante uma realidade radicalmente outra. A experiência crente constrói-se por isso, não raro, num intransigente e ardente oximoro, que é a sua figura por excelência: uma plenitude feita de vazio, um brilho que emerge às escuras, a palavra tornada carne.
Digo muitas vezes que, sobre Deus, faz-nos bem a nós crentes escutar os não-crentes. E posso dizê-lo por mim próprio: ensinam-me tanto. Um escritor que foi um dia à Capela do Rato disse-me no final: “Devias ter a coragem de retirar todas as cadeiras desta capela, onde os cristãos se sentam demasiado comodamente, e colocar sobre este soalho, envernizado e estável, uma boa camada de areia, que nos lembrasse que a fé supõe grandes procuras e contínuas viagens”. Fez-me recordar, nesse momento, um poema de Eugénio de Andrade — que cheguei a ouvir o poeta dizer que seria o texto mais significativo que havia escrito — e que nos recentra no espírito de procura. Sobre Deus temos incessantemente de recomeçar de novo. Sentir que o apelo da viagem, é mais necessário do que a comodidade das cadeiras. O poema de Eugénio chama-se ‘O Inominável’: “Nunca dos nossos lábios aproximaste o ouvido;/ nunca ao nosso ouvido encostaste os lábios;/ és o silêncio,/ o duro espesso impenetrável silêncio sem figura./ Escutamos,/ bebemos o silêncio nas próprias mãos e nada nos une/ — nem sequer sabemos se tens nome”. Os filósofos escolásticos ensinavam que enquanto nós somos existências, Deus é a essência. Se somos existências, nem conseguimos bem imaginar o que seja só essência. É uma definição talvez fácil de alcançar com o intelecto, mas árdua de abarcar globalmente. E esta dificuldade diz muito do abismo de transcendência que nos separa de Deus. Simone Weil lê isso, porém, em chave positiva e escreve: “É necessário estar feliz por saber que Deus se encontra infinitamente fora do nosso alcance. Temos assim a certeza de que o mal em nós, mesmo se submerge todo o nosso ser, não macula minimamente a pureza, a felicidade, a perfeição divinas... Não podemos dar um único passo na sua direção. Não se caminha verticalmente. Não podemos dirigir para ele senão o nosso olhar. Não há que procurá-lo, é necessário apenas mudar a direção do olhar. É a ele que pertence procurar-nos”. O que é que distingue a experiência crente? Talvez apenas isto: compreender que somos procurados, que a nossa fome de verdade é já encontro, que a nossa carência de absoluto é já contacto com o infinito. Quando falamos sobre Deus damos razão à frase do “D. Quixote” que garante: não é a estalagem quem mais nos ensina, mas sim a estrada.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2252 | 24/12/15]