A natureza não associa a primavera ao nascer apenas, mas também, ou sobretudo, ao renascer
Para os fanáticos da precisão (ou da poesia que se esconde na precisão, sobretudo naquela que parece mais inútil) o início da primavera está marcado, este ano, para o dia 20 de março, às 10h29. Esta é a hora prevista do equinócio da primavera e, como tal, o instante exato, o momento preciso em que a primavera despontará. Sabemos, porém, que raramente o seu arranque em nós coincide com esse momento formal. Por vezes, o degelo chega imprevistamente ao nosso coração ainda por dentro do inverno frio. Por vezes, o seu florescer vem com um atraso árido e dolente de séculos, num passo desesperantemente tardio. É que a primavera não é apenas uma estação exterior, nem se resume a um assunto climático ou botânico, mas tem uma aceção inevitavelmente humana. A primavera é tanto uma questão de fora como de dentro. Multiplica-se em expressões que se ramificam na paisagem do mundo, mas que modificam igualmente a paisagem interna, tão inesquecíveis uma como a outra, mais inesquecível esta do que a outra. Na verdade, a primavera do mundo, que o fulgor das acácias num rompante amarelo se põe a preanunciar, interroga-nos sobre algo mais importante do que o nosso florir. E só há uma coisa mais importante do que isso, do que o nosso florescer: é o nosso reflorescer. Que não sabemos quando e quantas vezes acontece. Sabemos apenas que acontece.
Libertemos, por isso, a primavera do mal-entendido mais recorrente. Ela surge habitualmente como metáfora da juventude, como ilustração dos verdes anos, uma espécie de onda de novidade e frescura que assinala — como estádio de graça que são — os ciclos em começo absoluto. Basta, contudo, caminharmos pelas ruas, fazer um desvio breve pelo parque, lançar os olhos de passagem ao jardim municipal para percebermos uma realidade completamente diferente. A natureza não associa a primavera ao nascer apenas, mas também, ou sobretudo, ao renascer. É a nudez gráfica das árvores, reduzidas pelo inverno a uns quantos ramos esticados no cinzento como gritos, que vai explodir numa profusão verde e inimaginável de vida. É aquela mata, talude, aquela fileira disposta ao longo da estrada, aquele barranco, aquele aglomerado de árvores descasadas que não chega a ser um bosque (mas que atira para os distantes bosques o nosso coração), tudo isso que vimos perder vitalidade ao nosso lado, que percebemos a definhar até ao extremo deixando-nos a caminhar mais sós, que agora vive esta reviravolta que nos assombra. No fundo, aqueles sobre quem recaiu o oceano gelado do tempo com maior violência, os que estiveram mais próximo da morte, nem que seja simbólica, incendeiam-se num despertar que nos dá a ouvir a canção que talvez trauteemos para falar de nós.
Pode ser apenas uma referência aproximativa, mas é bom saber que, às 10h29, do dia 20 de março, a primavera se levantará e que ela é imagem de outras primaveras, ainda mais decisivas, que se erguerão. Que a notícia circule entre os amolgados e feridos que somos todos; chegue aos que tentaram e falharam, aos sobrecarregados, aos que começaram a dizer que já é tarde; corra entre os que viram o fogo tornar-se cinza e não voltar a acender-se, os que semearam e não colheram, os que olham assustados as mãos vazias; visite os desiludidos, os encarcerados no seu desgosto, os enlutados, os perseguidos por aflições maiores do que as que podem suportar; resgate os que se perderam nos corredores longos e todos iguais dos seus invernos, os que sem saber como viram-se a pensar que a vida já não é para eles, os que caminham pelo tempo desolados e sós.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2315 | 11/03/17]