Saímos e regressamos de casa muitas vezes. Mas esse tráfego, vivido nas andanças do quotidiano, torna-se tão habitual que, a maior parte das vezes, nem damos por ele. Sair de casa não é bem um sair. E a mesma coisa pode dizer-se dos nossos regressos vespertinos. Vivemos mentalmente a vida como um continuum e encontramos aí o conforto de pensar que somos os mesmos nos mesmos lugares e que, no fundo, os êxodos domésticos da nossa circum-navegação diária, mais turbulenta ou mais pacificada, não nos alteram a nós nem ao mundo que construímos. O perigo desse pensamento é o automatismo sonâmbulo em que a rotina, por muito tempo, nos mergulha. Tudo fica estabelecido numa ordem tão previsível que praticamente nos dispensa de um ver que seja um ver, de um escutar que seja um efetivo escutar, e por aí fora.
Quando, porém, regressados de umas férias ou de uma estada num outro sítio, reabrimos a porta de casa é como se esse mundo, tão íntimo a ponto de confundir-se connosco mesmos, tivesse ganho, pelo efeito da distância, uma visibilidade que nos surpreende. São frações de segundo, mas são o tempo de uma pergunta que emerge sabe-se lá donde e que nos faz interrogar: “é aqui?”, “é esta a casa?”, “este lugar estranho é a minha casa?”. Mas já a necessidade de pousar os sacos, de abrir e arrumar o conteúdo das malas afasta o choque desta hesitação que se desfaz quando os cheiros, os rumores, as amarras dos objetos nos prendem docemente a si, como que nos consolando de, por um infinitésimo de segundo, termos provado o irresolúvel drama comum a todo o filho do homem: o de não ter onde reclinar a cabeça. Uma casa não é, assim, só o lugar onde escondemos ou disfarçamos o desabrigo do existir: é também a arena onde lutamos com ele; é o palco onde mais nos expomos ao seu olhar; é o laboratório onde o vasculhamos, ampliando-o, detalhando-o, procurando entender a sua complexa morfologia; e é a mesa onde aprendemos, sozinhos ou em companhia, a alimentarmo-nos dele.
O escritor John Burroughs, que pertence à linhagem dos grandes mestres rurais norte-americanos, na senda de H.D. Thoreau e de T.W. Emerson, recusava aplicar a palavra “arquitetura” à construção da casa onde se vive. “No preciso momento em que um ser humano começou a pensar arquitetonicamente a própria casa fez, com isso, entristecer e chorar as divindades mais sensíveis” — escreveu ele, que tinha um orgulho muito grande em ter, nas margens do rio Hudson, construído pessoalmente a sua. O que deve guiar a construção das nossas casas, diz Burroughs, é “o instinto doméstico”, e que se pode definir como instinto de sobrevivência; desejo de relação; necessidade de abrigo; de amor a um lugar do mundo, mínimo que seja, mas que nos pertença; forma de fundar as próprias raízes no silêncio, na hospitalidade, na palavra e na troca. Em casa nascemos e crescemos pelas estações diferentes que plasmam os dias; comemos e dormimos; vivemos o acordo e a interrogação; herdamos e reinventamos os usos sem nenhuma pretensão; convivemos com os objetos e as expressões do visível até eles se tornarem como que emissários ou sentinelas de outra coisa; sentimo-nos levados, pela ausência ou pela presença mais ardente, à dobra, à prega, ao sigilo, ao segredo, ao mistério. Por isso, sentimos certos regressos a casa como o inexplicável regresso a nós próprios.
São insignificantes coisas as que povoam esta conversa? Lembro-me da recomendação que o poeta Rainer Maria Rilke deixa nas “Elegias de Duíno”: “Dedica ao Anjo um louvor do mundo, mas não do mundo indizível/ perante ele é inútil alardear tudo o que seja prodígio e magnificência.../ Por isso mostra-lhe o que é simples/ o que, formado de geração em geração, vive como coisa nossa/ ao alcance da mão”.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2238 | 19/09/15]