Poeira
A areia fina do deserto é também usada nas ampulhetas que mediam o tempo na antiguidade. O tempo é a medida da mudança. Numa ampulheta, essa mudança estava na areia que passa, por gravidade, de uma âmbula para a outra. E dado que as coisas pouco se alteram num deserto se o Sol estiver escondido por uma densa poeira, até parece que o tempo pára.
Talvez não seja evidente que o primeiro pensamento que temos sobre a poeira de um deserto seja o tempo. À poeira associamos mais a sujidade, ou no caso de um deserto, à escassez. E nos tempos de hoje quanta escassez de ideias, perdão, paciência e até de tempo existem porque o coração humano insiste em manter-se um coração de pedra. Em vez disso, poderia ser mais fluido como a poeira do deserto que viaja milhares de quilómetros ao sabor do vento.
Imagina-te a olhar para a poeira de uma ampulheta, literalmente, a ver o tempo passar. Naquele repetido cair dos mínúsculos grãos de areia, a mente facilmente começa a divagar e a entrar no modo criativo de ligar o que antes parecia impossível, a pensar naquele problema a resolver, ou naquela pessoa com quem falta reatar o relacionamento. Na poeira do deserto encontra-se o gérmen dos momentos de solitude que nos ajudam a re-centrar a nossa experiência do tempo presente.
A nossa casa comum antes de ser um planeta era poeira cósmica. E também nós somos poeira das estrelas. É estranho pensar que a consciência que te habita possui tão ínfima e humilde origem. Foi preciso uma quantidade incomensurável de tempo e paciência para dar origem ao primeiro pensamento na história humana. Foi preciso que a poeira assentasse, aglomerasse e se transformasse para nascer a vida.
Os tempos que vivemos serão sempre conturbados e a poeira que bloqueia o céu ainda é visível, mas quanta poeira habita o mundo da informação que bloqueia a nossa consciência à verdade ou deturpa-a. A desinformação que alimenta muitas pessoas nesta guerra que vivemos é poeira digital atirada para a vista de quem perdeu gradualmente a capacidade de ler os sinais dos tempos. Pois, cedeu ao entretenimento excessivo. E o problema é que deixar assentar a poeira exige um tempo que não dispomos, pelo que não é fácil saber o que fazer. Mas quando a poeira assenta, o mais óbvio é limpar, quando poderíamos fazer arte.
Quem faz arte com poeira constrói beleza disposto a perdê-la. É um artista desapegado da sua arte e isso, se pensarem bem, é admirável por ser pouco comum. Quando fazemos algo de belo temos a tendência de conservar, mas o artista que usa a poeira para fazer arte exterior sabe que uma chuva, vento ou um pano é o suficiente para que a sua arte desapareça.
A arte da poeira usa as mãos para retirar o que está a mais. É como se a imagem sempre estivesse naquele lugar e foi preciso limpar os sítios certos para fazer sobressair a unidade das formas a partir a uniformidade da poeira informe.
Allison Cortson é uma mulher que pinta com a poeira. Convida os amigos a oferecerem-lhe a poeira que geram em sua casa e devolve-a na forma de um quadro que parece uma fotografia. Ela reconhece que a poeira é uma marca do tempo. Diz que «a poeira foi acumulada num vidro por um ano e depois formaram-se imagens abstractas a partir dessa poeira. O meu trabalho é muito semelhante a isto dado o tempo que leva a recolher a poeira.» A ideia desta arte surgiu-lhe numa aula, curiosamente, de Partículas Elementares no Universo. Diz — «estávamos a aprender sobre como a matéria é na sua maioria um espaço vazio e este conceito é muito estranho e contradiz tudo o que experimentamos no quotidiano. Eu estava sentada no sofá a ver as partículas de poeira a flutuar e iluminadas pela luz que vinha da janela e veio-me a ideia de usar a poeira como material para desenhar o espaço sólido como algo de leve e efémero. Achei interessante que o simples acto de alguém viver e regenerar células criasse esta substância que está em todo o lado.» — Com estas palavras, Allison recordou-me a letra feita por um amigo para a qual compus uma música que dizia —
Eu sou um pouco de nadapoeira que o mundo sacudiu dos seus pés. Esse nada que é feito de eterno, um dia será estrada, um dia será vento.
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