A normalidade da sucessão e o sucesso da anormalidade
O que acontece, pela primeira vez em Roma, é já a realidade de muitas dioceses do mundo: terem simultaneamente o bispo emérito e o bispo residencial, por vezes até dois eméritos, como poderá vir a suceder em Roma. A lucidez corajosa de Bento XVI, a livre e "profunda serenidade de espírito", ao decidir renunciar e pôr fim ao seu ministério de sucessor de São Pedro (28-02-2013), no serviço da Igreja de Roma e da Igreja Universal, vai marcar a história do catolicismo. Tinha consciência de quanta "gravidade e inovação" carregava.
A normalidade humana não retira o sentido sacro a figuras da Igreja, como o Papa Bento XVI e o Papa Francisco. Aliás, o sacro em cristianismo é muito relativo e o fundamental é o conceito de santidade, isto é, o modo de responder como Cristo à salvação e redenção, à dignidade humana, ao bem comum da humanidade e do cosmos. Trata-se de acolher, na hora presente, com todas as capacidades e talentos, o que o Espírito inspira. Portanto, é desejável e normal que quem vem de novo traga diferentes prioridades e respostas adequadas a novos problemas.
O facto de o sucessor, Papa Francisco, ser uma personalidade muito diversa na experiência existencial, na base vivencial da Igreja, no modo de comunicar, no estilo sinodal de governar, no privilegiar da realidade e na proximidade aos mais pobres pode levar, naturalmente, a comparações. A maioria do Povo de Deus, dentro e fora das comunidades cristãs, manifesta uma simpatia autêntica pela profunda humanidade de Francisco.
Existem óbvias tentações de adeptos e fãs do que já não é o bispo de Roma. A sua distância e dedicação orante dão azo, contudo, à incubação de um mitológico defensor de ideologias conservadoras. Parece-me um abusivo refúgio dos descontentes das aberturas conciliares, dos iludidos que a história ande para trás. Que alguns nostálgicos de uma Igreja muralhada na liturgia antiga, nos rituais, adotem como inspirador Bento XVI considero-o um flagrante aproveitamento, do qual o Papa Ratzinger não é minimamente culpado. É extremamente redutor do excelente e claro magistério de Bento XVI adotá-lo como bandeira de grupos mais agarrados a velhas ideias do que ao Evangelho de Jesus, presos mais a legalismos do que à centralidade do amor, bem evidenciada pelo papa alemão. O seu discurso teológico, patente nos livros Jesus de Nazaré, aproximou muitas pessoas da fé cristã; a sua sensibilidade privilegiou a beleza e a verdade. Certamente que com Francisco se acentuou a bondade, a frontalidade insistente de aplicar a doutrina ao realismo concreto da vida dos cristãos. A situação económica e política foi iluminada de modo profético. Evidenciou-se o caminho de acompanhamento e de discernimento, numa sociedade sujeita a rápidas mudanças.
Não seria justo diabolizar Bento XVI, castigado por má imprensa, e beatificar Francisco, ainda protegido por boa imprensa.
Grave será que alguns transformem a obediência ao Papa, defendida na sua lógica, em um concordismo autocentrado e seletivo de opões a seu gosto e não em autêntico acatamento do único Bispo de Roma que existe e se chama Francisco. Confundem sensibilidades de pequenos grupos com o bem da Igreja. Não entenderam a fé cristã como peregrinação, disponível ao confronto com novas questões. Para ser fiel à sua missão a Igreja deve renovar-se continuamente, em diálogo com outras religiões, confissões cristãs e com a cultura contemporânea. Assim, pode contribuir para uma abertura aos valores perenes da Transcendência.
[©D. Carlos Moreira Azevedo]