«Não basta gerir a crise migratória como um problema numérico»
LAMPEDUSA Francisco inaugurou as visitas do seu Pontificado, em 2013, com uma visita à ilha que “em vez de uma avenida de esperança, se transformou num caminho de morte” para milhares de imigrantes que fogem da guerra, da miséria ou da fome. O Papa voltou a Lampedusa quatro anos depois, sempre para apontar o dedo aos governantes que não agem e à Igreja que tem por missão estar próxima, caso contrário ”não passa de uma ONG”. “E a Igreja não é uma ONG. É uma história de amor”, diz
A entrevista foi dada no dia 28 de março, em Roma, a uma revista bimestral de estudos e documentação, que é promovida por um dos Departamentos do Ministério do Interior de Itália. Mas Francisco, que sempre deu prioridade máxima ao tema dos refugiados, fez diligências para que esta conversa pudesse ser divulgada além-fronteiras. O Papa, que em 2013 fez a sua primeira visita a Lampedusa para “chorar os mortos que ninguém chora” e “despertar consciências”, colocou a questão das migrações no centro da agenda. Ainda no início deste ano, por iniciativa de Francisco, foi criado um novo dicastério no Vaticano dedicado às migrações. É um departamento do Governo da Santa Sé, que reporta diretamente ao Papa e que se designa para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral. Foi através deste dicastério que o Expresso aceitou ter o exclusivo para Portugal da publicação desta entrevista, onde o Papa lembra que os refugiados são um problema de todos e apela à consciência de governantes e dirigentes da comunicação social.
As migrações são, por natureza, um fenómeno que ultrapassa as fronteiras dos Estados individuais e até dos continentes. Fala-se neste sentido, consideradas as projeções demográficas dos próximos decénios, de um continente euro-africano. São transformações históricas que colocam em jogo identidades culturais, valores, experiências históricas. As políticas dos diversos países devem cruzar-se com a cooperação internacional. É uma necessidade que Vossa Santidade tem frequentemente recordado. A Europa, que muito recebeu, tem de aprender a dar. Qual poderá ser a passagem da consciência à prática?
Há, sem dúvida, uma necessidade de cooperação internacional para a gestão das políticas migratórias que respeitem quem recebe e quem é acolhido. Julgo que os países europeus, como tantos outros países que experimentaram na própria pele tanto a imigração como a emigração, devem recordar-se do seu próprio passado. Como foi difícil no pós-guerra para os milhões de europeus que partiam, muitas vezes com toda a família, e atravessavam o oceano para chegar à América do Sul ou aos Estados Unidos! Não foi uma experiência fácil também para eles. Sofreram o peso de serem considerados estrangeiros, chegados de longe e sem qualquer conhecimento das línguas locais. Não foi um processo fácil de integração, mas sempre acabou por se concluir com sucesso! É importante, pois, ter consciência do contributo oferecido pelos migrantes aos países de chegada. Os europeus contribuíram muito para o crescimento das sociedades para lá do oceano. A história é a mesma. O intercâmbio de culturas e conhecimentos é uma riqueza que deve ser valorizada. Como disse a 1 de novembro, quando regressava da minha viagem à Suécia, não nos devemos assustar, porque a Europa formou-se com uma contínua integração de culturas, de tantas culturas. Quando chegarmos a considerar os migrantes como um enriquecimento para a nossa sociedade, então seremos capazes de praticar o verdadeiro acolhimento e conseguiremos dar-lhes o que recebemos no passado. Temos muito a aprender do passado; é importante agir com consciência, sem fomentar o medo do estrangeiro. A 21 de fevereiro de 2017, expliquei aos participantes no Fórum Migrações e Paz que é preciso promover o acolhimento e a hospitalidade dos deslocados e refugiados, favorecendo a sua integração, tendo em conta os direitos e os deveres recíprocos de quem acolhe e de quem é acolhido. A integração, que não é assimilação nem incorporação, é um processo bidirecional, que se baseia essencialmente no mútuo reconhecimento da riqueza cultural do outro: não é esmagamento de uma cultura por outra, e nem também isolamento recíproco, com o risco de nefastas e perigosas criações de guetos. No que respeita a quem chega, e é obrigado a não se fechar à cultura e às tradições do país hospedeiro, respeitando antes de mais as suas leis, não pode de modo nenhum ser descuidada a dimensão familiar do processo de integração: por isso, sinto o dever de insistir na necessidade de políticas aptas a favorecer e privilegiar os reencontros familiares. Quanto às populações autóctones, devem ser ajudadas, sensibilizando-as adequadamente e dispondo-as positivamente para os processos de integração, nem sempre simples e imediatos, mas sempre essenciais e imprescindíveis para o futuro. Para isso, há que promover também programas específicos, que favoreçam o encontro significativo com o outro. De seguida, para a comunidade cristã, a integração pacífica de pessoas de várias culturas é, de algum modo, também um reflexo da sua catolicidade, uma vez que a unidade que não anula as diversidades étnicas e culturais constitui uma dimensão da vida da Igreja, que no Espírito do Pentecostes é aberta a todos e a todos deseja abraçar.
No dia 22 de setembro de 2016, ao receber em audiência uma delegação de jornalistas italianos, Vossa Santidade exortou a favorecer uma verdadeira cultura do encontro. Não há dificuldades, disse, que as pessoas de boa vontade não possam superar. Em 1991, o diretor da Cáritas de Roma, Luigi Di Liegro, instituiu um dossiê estatístico anual sobre a imigração porque, sustentava ele, só uma correta informação sobre as dinâmicas migratórias pode fazer cair tantos preconceitos, lugares comuns e encerramentos que existem. Como manter vivo de acordo com um amor de verdade este debate no mundo atual da comunicação, tão extraordinariamente amplificado pelos novos meios de comunicação?
Os meios de comunicação deveriam ser impelidos pelo dever de explicar os diversos aspetos das migrações, para que a opinião pública conheça também as causas deste fenómeno. A violação dos direitos humanos, os conflitos violentos e as desordens sociais, a falta de bens de primeira necessidade, as catástrofes naturais e aquelas que são causadas pelo ser humano: tudo isto deve ser narrado com toda a clareza para que se possa ter um conhecimento adequado do fenómeno migratório e, consequentemente, uma sua correta abordagem. Os próprios meios de comunicação utilizam com frequência estereótipos negativos para falar dos migrantes e refugiados. Basta pensar no uso incorreto que muitas vezes fazem de termos com os quais apelidam os migrantes e refugiados. Quantas vezes não se ouve falar de “clandestino” como sinónimo de migrante. Isto não é correto; é uma informação que parte de uma base errada e que conduz a opinião pública a elaborar um juízo negativo. Sem deixar de pensar também no sensacionalismo a que grande parte dos meios de comunicação hoje recorre. Provoca um maior brado uma crónica criminal do que o relato de uma boa notícia. Nesta linha, é mais favorável falar de alguns casos de delinquência que tenham como protagonista um migrante do que relatar os muitos casos de integração promovidos pelos mesmos migrantes. A boa informação pode abater os muros do medo e da indiferença. O outro, o diferente, amedronta quando não é conhecido. Mas se ele é objeto de relato, pelo qual vem a entrar em casa das pessoas, por meio de imagens e de histórias, apresentado nos seus aspetos mais humanos e mais positivos, então o conhecimento permite ultrapassar o estereótipo e o encontro torna-se autêntico. E quando o medo passa, as portas também se abrem e o acolhimento é espontâneo. Como afirmei aos chefes de Estado e de Governo da União Europeia por ocasião do 60º aniversário da assinatura dos Tratados de Roma, a abertura ao mundo exige a capacidade de diálogo como forma de encontro a todos os níveis, a começar por aquele entre os Estados membros e entre as instituições e os cidadãos, até àquele com os numerosos imigrantes que aportam às costas da União. Não basta gerir a grave crise migratória destes anos como se fosse apenas um problema numérico, económico e de segurança. A questão migratória coloca uma questão mais profunda, que é antes de mais cultural.
A 8 de julho de 2013, realizou o gesto de ir a Lampedusa. “Senti o dever de vir aqui hoje para rezar — disse —, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as nossas consciências.” No dia 16 de abril de 2016, repetiu este gesto em Lesbo, unindo a sua oração à do arcebispo de Atenas Ieronymos e do patriarca de Constantinopla Bartolomeu. Como é que o diálogo ecuménico e inter-religioso, não apenas entre as confissões filhas de Abraão mas também com todas as outras, pode contribuir para uma correta visão do problema das migrações, com o seu peso de sofrimentos humanos, na busca de soluções possíveis de acolhimento a quem chega à Europa?
A visita a Lesbo e a oração com o arcebispo de Atenas Ieronymos e o patriarca de Constantinopla Bartolomeu representam uma partilha fraterna e de proximidade ao grito de tantos inocentes que pedem apenas para poderem salvar a própria vida. A partilha fraterna com outras confissões apela às consciências para que não se voltem as costas ao pedido de ajuda e à esperança dos irmãos e irmãs em dificuldade. As migrações, se forem abordadas com humanidade, oferecem uma oportunidade de encontro e de crescimento para todos. Não devemos perder o sentido da responsabilidade fraterna. A defesa do ser humano não conhece barreiras; estamos todos unidos no querer garantir uma vida digna a cada homem, mulher e criança obrigados a abandonar a própria terra. Não há até diferença de credo que se possa opor a esta vontade. É precisamente nestes contextos que demonstramos ser irmãos que em cada dia se esforçam pela edificação do bem, o mesmo bem. Se a mesma união fosse adotada também pelos governantes dos diversos países, então talvez se pudesse dar algum passo mais concreto a nível global em favor dos migrantes e refugiados. A ilha de Lesbo, como Lampedusa, apresenta ao mundo o rosto de pessoas inocentes em fuga de guerras, violências e perseguições. Homens, mulheres, crianças que empreendem sós estas viagens chegam cansados e extenuados, com a esperança de salvar a própria vida por meio de viagens dramáticas por terra e infelizmente também por mar. Na Europa, bem como noutras partes do mundo, atravessa-se um momento crítico na gestão das políticas migratórias. Os governantes precisam de clarividência e de coesão para um vigilante respeito dos direitos fundamentais da pessoa e para pôr fim às causas das migrações forçadas que obrigam os civis a fugir.
No dia 1 de janeiro de 2017 entrou em vigor o que Vossa Santidade tinha disposto com o moto proprio de 17 de agosto para a criação do novo dicastério social da Igreja Católica para o “Serviço do Desenvolvimento Humano Integral”. O dicastério, assumindo em si as competências de diversos conselhos pastorais anteriores, é, por conseguinte, o novo ponto de chegada organizativo de um longo percurso histórico da doutrina social da Igreja. Que missão é confiada ao novo dicastério com respeito aos refugiados e aos migrantes?
A 1 de janeiro de 2017, instituí a Secção para os Migrantes e Refugiados no âmbito do novo dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Os milhões de migrantes, refugiados, deslocados e vítimas do tráfico humano têm necessidade de uma atenção particular. Por isso, decidi ocupar-me pessoalmente deles, pelo menos durante algum tempo, e coloquei esta secção sob a minha imediata dependência. A missão principal da secção é a de apoiar a Igreja e os pastores — a nível local, regional e internacional — no acompanhamento das pessoas em cada etapa do processo migratório, com uma atenção especial a quantos, de diversos modos, são obrigados a deslocar-se ou a fugir, ou que enfrentam provações e sofrimentos nos países de origem, trânsito e destino. Penso em todos quantos fogem de conflitos, perseguições e emergências humanitárias, tanto naturais como obra de mãos humanas. Penso nas vítimas do tráfico humano, nos migrantes em situação irregular, trabalhadores imigrantes em situações de exploração e mulheres, adolescentes e crianças em situação de vulnerabilidade. Tradução do italiano de Mário Almeida
[Giuseppe Sangiorgi | Expresso | 8 de Abril de 2017]