O Papa é um bom CEO
Tal como os crentes, olho para tudo o que se passa em Fátima com curiosidade e espanto — mas por razões diferentes. Agora, notei como a Igreja conseguiu provar a santidade dos dois pastores mesmo a tempo da visita do Papa Francisco e do aniversário dos 100 anos das “aparições”.
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E notei como, em Portugal, muitos jornalistas falam das “aparições” como um facto, em contraste com a BBC, que pratica uma saudável distância e diz que “a capela é construída no exacto lugar onde se diz que a Virgem Maria apareceu”.
Li muito do que foi escrito sobre a visita de Francisco a Fátima e parei numa reportagem do Diário de Notícias, na qual um peregrino conta que a avó considerava o seu oitavo filho “um milagre de Fátima” porque, “já de idade avançada e com muito poucas hipóteses de voltar a engravidar, pediu insistentemente a Nossa Senhora de Fátima que lhe concedesse essa graça”. A avó conseguiu de facto engravidar, teve uma bebé como queria e, para pagar a promessa, deu-lhe o nome de Jacinta. Reli a história à procura da “idade avançada” e, não a encontrando, escrevi uma mensagem ao neto-peregrino, hoje professor universitário. “A minha avó tinha 44 anos quando a minha mãe nasceu”, respondeu prontamente (um luxo digital). Tal como aconteceu a milhares de mulheres antes de a pílula contraceptiva ter-se generalizado, poderia acrescentar-se.
Talvez por ter vindo a Portugal como peregrino, o Papa não deixou nenhuma marca política relevante. Somou, mesmo assim, novos exemplos ao seu catálogo de gestos simbólicos. Acenar com um lenço branco na “cerimónia do adeus” à Nossa Senhora foi igual a ter escolhido, no início do papado, viver num modesto quarto do novo hotel do Vaticano, em vez de ocupar o Palácio Apostólico. Francisco dá o exemplo da simplicidade e da frugalidade, na linha do quadro moral que associa, desde a Antiguidade Clássica, essas escolhas à sabedoria e à felicidade.
Pedir a um Papa que dê o exemplo, que não abuse do poder e que, pelo caminho, prescinda de luxos e privilégios, não é pedir pouco. Estamos rodeados de líderes políticos e religiosos que não o fazem. Ter esta atitude permite-lhe exigir mais (e tenho uma secreta esperança de que, um dia, o cónego da Sé de Lisboa e todos os funcionários da igreja que estacionam os carros em cima do passeio, mesmo encostados à Catedral, colocando crucifixos no espelho retrovisor e pagelas da Nossa Senhora no tablier para não serem rebocados, acabem por seguir-lhe o exemplo).
Ainda é cedo para saber se Francisco vai conseguir transformar o Vaticano de forma irreversível. Mas o trabalho que está a fazer na reforma das finanças da Santa Sé é tão radical que não será fácil fazer marcha-a-trás.
Mal foi eleito, Francisco disse estranhar que o processo de canonização dos santos custe meio milhão de euros e pediu uma auditoria às contas e processos. Três anos depois, foram anunciadas as novas regras: agora há administradores responsáveis por cada canonização, vistorias internas e regras orçamentais. Os santos são a ponta do iceberg.
No fundo, está o mais duro. O Papa foi eleito em Março de 2013 e em Abril contratou o Promontory Financial Group, uma consultora norte-americana que pertence à IBM, para fazer uma supervisão às contas do Instituto das Obras de Religião (Banco do Vaticano no jargão não-vaticanista). Em Junho, convidou quatro peritos internacionais em finanças — um ex-director da Autoridade Monetária de Singapura (J. Y. Pillay); um ex-alto quadro de bancos internacionais como o JPMorgan e o Merrill Lynch (Marc Odendall); um conselheiro de George W. Bush especialista em contraterrorismo (Juan Zarate) e a ex-presidente de duas seguradoras italianas (Maria Bianca Farina) — para a Autoridade de Informação Financeira, a agência do Vaticano que funciona como watch dog das contas internas, até aí 100% composta por religiosos italianos. Pouco depois, reformou a Comissão dos Cardeais do Banco do Vaticano, afastando, entre outros, o brasileiro Odilo Scherer, que chegou a ser apontado como possível sucessor de Bento VXI. E em Outubro, deu ordem para que se tornasse público — pela primeira vez na história — o relatório anual da auditoria às contas da Santa Sé feito pela KPMG, consultora especialista em questões fiscais (que revelou um aumento dos lucros do Banco do Vaticano de 20 milhões para 86,6 milhões de euros). Com este fôlego, em Fevereiro de 2014 criou o cargo de ministro da Economia e nomeou o cardeal australiano George Pell, seu forte aliado na guerra aberta contra o establishment.
E isto foi só para abrir.
(Ainda não consegui perceber se quando o cardeal Pell anunciou a descoberta de “centenas de milhões de euros” não contabilizados como uma “boa notícia” que mostrava que, “afinal, as contas não estavam assim tão mal”, queria genuinamente tranquilizar os 15 mil clientes do Banco do Vaticano ou dar uma estalada de luva branca nos que se opõem à transparência.)
Depois, no Verão de 2015, contratou o primeiro auditor-geral independente, Libero Milone, antigo-presidente da Deloitte em Itália, com um mandato avassalador (tem autonomia total de movimentos e responde apenas ao Papa); criou o Grupo de Trabalho para o Futuro Económico; contratou a Ernst&Young para auditar a gestão das lojas e serviços externos do Vaticano e quer integrar as regras do International Public Sector Accounting Standards, a nova bíblia da transparência financeira que as próprias Nações Unidas adoptaram. E no fim desse ano contratou a PwC para uma auditoria aos standards internacionais, entretanto misteriosamente afastada e que está hoje no centro de um arrastado braço-de-ferro interno.
Vale a pena ler o que contaram os peritos financeiros sobre o primeiro encontro com Francisco em 2013. O Papa não os recebeu no Palácio Apostólico, mas num edifício sem pompa nem obras de arte, e abriu a reunião com esta frase: “Para a minha mensagem espiritual ser credível, as finanças do Vaticano têm de ser credíveis.” Disse também que depois de séculos de intrigas e segredos, está na altura de “mostrar as contas aos fiéis”, que o Vaticano não pode ter orçamentos "voláteis" e imprevisíveis, “nem contratos sem concurso” com valores “extraordinários” e acima do mercado. Criado em 1942, o Banco do Vaticano é olhado como uma quase-offshore e esteve envolvido em vários escândalos de corrupção e ligações à máfia.
[©Bárbara Reis | Público]