Tomáš Halík: “Deus gosta de quem luta com ele”
Deus não é um problema, é um mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério”, diz o teólogo checo Tomáš Halík, que esta semana esteve em Lisboa, a propósito da edição do seu último livro, Diante de Ti os Meus Caminhos (ed. Paulinas). Obra que cruza as memórias e a reflexão teológica e antropológica a que o autor já habituou os seus leitores, Halik percorre, nela, os anos da aproximação à fé cristã durante a sua juventude, a opção pelo catolicismo e pela missão de presbítero, a clandestinidade e as proibições e controlos a que foi sujeito, a morte do colega Jan Palach, a democratização da então Checoslováquia ou a amizade com o primeiro Presidente eleito, Vaclav Havel.
A partir do seu trabalho com jovens estudantes, Halik traça, também, as suas reflexões sobre o papel do cristianismo na contemporaneidade. “Não acredito numa Igreja sem feridas”, diz, para manifestar a sua extrema preocupação com o fenómeno dos populismos contemporâneos: “Comunismo e populismo não se podem comparar. No comunismo, precisamos de coragem. Agora, precisamos de sabedoria.”
Ao longo da entrevista, Tomáš Halík pára por vezes durante largos segundos para pensar na resposta. Noutras, volta atrás, porque a ideia não estava a sair como pretendia. “Escrevo os meus livros para pessoas com mentes e corações abertos”, dirá, a terminar.
P. – Nos seus livros, cita várias vezes Nietzsche e, sobretudo, o seu “Assim Falava Zaratustra”. Neste último, escreve mesmo que começou a ler Nietzsche e volta a ele sempre, em diferentes momentos da sua vida.
Há várias similaridades entre Nietzsche e SørenKierkegaard, que foi um grande cristão, não conformista. Também há semelhanças com Pascal. Todos eles lutam contra um cristianismo superficial e de massa. Nietzsche criticava Jesus mas há também alguns capítulos no seu Anti-Cristo, que é como uma canção de amor e admiração por Jesus. Penso que os críticos perspicazes são sempre bons parceiros para pensar, provocadores do pensamento.
Termina este novo livro escrevendo: “Acredito que o NADA, ao qual nos dirigimos na morte, é apenas outro nome maravilhoso de Deus.” Isto é uma profissão de fé cristã ou uma declaração ateia?
É uma citação do grande místico Mestre Eckart: “Deus não é nada das coisas deste mundo.” É uma purificação da idolatria presente em alguns dos nossos conceitos de Deus. Alguns retratos de Deus são humanos e não podemos viver sem eles. Mas, se esquecermos a diferença entre o símbolo e o que ele simboliza, isso é idolatria, fundamentalismo. Mestre Eckart está a dizer: Deus não é nada assim.
Deus não é um problema, é um mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério, para viver este mistério, este paradoxo da vida sem medo e com confiança.
Esse mistério de que fala tem algo a ver com o “horizonte absoluto” de que falava o Presidente Havel?
Essa expressão de Havel é inspirada em Martin Heidegger e no existencialismo. Sim, há alguma similitude. Penso que é algo muito típico da espiritualidade checa: [muitos checos] não são ateus, são muito sensíveis aos valores espirituais, mas não são capazes de falar de Deus em termos tradicionais.
O “alguma coisa” é a religião mais difundida no nosso tempo: “Não acredito em Deus mas alguma coisa deve existir...” Este é um desafio para os teólogos, para a hermenêutica sobre o que será “alguma coisa”. Deus não é “alguma coisa”, não é um assunto entre outros assuntos, é algo muito diferente, o que nos provoca a meditar e ir mais fundo.
No seu Paciência Com Deus, recorda a história de uma parede em Praga onde alguém tinha escrito “Jesus é a resposta”, e outra pessoa teria acrescentado “Mas qual era a pergunta?” A Igreja e os cristãos têm demasiadas respostas para perguntas que esqueceram?
Receio que sim.
Pode dar um exemplo de uma dessas perguntas mais importantes?
A pergunta sobre o sentido da vida. Não apenas enquanto questão teórica ou filosófica, mas uma questão prática: em todas as decisões, na nossa vida, estamos a responder de forma concreta à pergunta sobre o sentido da vida. O nosso agir é sempre uma resposta.
Também escreve que muitas vezes concorda com os ateus, mesmo em quase tudo. É possível um crente dizer isso?
Muitos ateus não são inimigos de Deus, mas são inimigos de um certo tipo de teísmo, de uma teoria humana sobre Deus. E há vários tipos de teísmo muito problemáticos. O ateísmo pode ajudar-nos a purificar a nossa fé da idolatria.
A secularização é um sinal dos tempos, como o padre Arturo Sosa, o geral dos jesuítas, disse no último Sínodo?
Foi um sinal dos tempos em décadas anteriores. Agora, vivemos num mundo pós-secular: apesar dos muitos conceitos de secularização, é errada a ideia de que a religião está a desaparecer. A religião não está a desaparecer, apenas desapareceu do ponto de vista de alguns média e de alguns cientistas sociais dos séculos XIX e XX. Hoje em dia, a religião está aqui.
Não diria que Deus e a religião estão de volta, porque nunca desapareceram. Mas estão em transformação. Somos testemunhas da grande transformação da religião. O modo tradicional de viver a religião está cada vez mais débil, está a perder a sua biosfera cultural e social.
Em que sentidos se está a transformar?
A religião, por vezes, transforma-se em ideologia política, algo muito perigoso; outras vezes, transforma-se em espiritualidade, que deve ser desenvolvida para não nos tornarmos em alguém que vira costas ao mundo, mas ante alguém que encara o misticismo com olhos abertos.
Contemplação e acção: grandes personalidades como o fundador da comunidade de Taizé, Roger Schutz, falavam da contemplação e acção. E era isso que ele queria dizer: precisamos da teologia pública e de uma religião pública, que esteja no mundo para defender os direitos humanos. Não é preciso ter uma ideologia política para ser activo na vida pública, mas antes ter uma dimensão mais profunda da contemplação e espiritualidade.
A indiferença é pior que o ateísmo militante?
Sim. Há um ateísmo militante estúpido e é sempre difícil discutir com gente estúpida. Mas há também o ateísmo de pessoas que têm os seus corações feridos, que estão feridas por algum mal nas suas vidas. Devemos tomar essas pessoas seriamente porque este sentimento de que não há Deus é também um momento que faz parte da nossa fé cristã: é a fé da Páscoa, onde há morte e ressurreição.
Não há ressurreição sem cruz e, por vezes, há crises de fé na nossa vida pessoal ou na História, como uma participação mística no momento em que Jesus, na cruz, disse: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Devemos entender esta pergunta. A resposta da ressurreição não é regressar ao Jesus do passado, mas abrir para uma nova dimensão. Por vezes, na nossa própria história ou na história da Igreja e da humanidade, algum tipo de fé tem de morrer. Mas, perante isso, o ateísmo não é a única possibilidade, há uma fé mais profunda, um an-ateísmo, um acreditar de novo. É a ressurreição da nossa fé, que é a transformação.
Ao falar de pessoas feridas, escreve no seu livro O Meu Deus é um Deus Ferido: “Ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus.” Significa que no ateísmo e no agnosticismo há também muitas feridas?
Há pessoas que dizem “eu gostaria de acreditar mas não consigo, porque estou tão ferido por este mal...” Devemos abraçar este tipo de ateísmo para dizer às pessoas esta experiência que é o absurdo do mal e o tempo de escuridão, a experiência da noite escura da alma.
As noites escuras da alma são um momento muito importante. Não devemos anular essas perguntas de modo simplista, devemos abraçar essas pessoas, especialmente nas feridas dos corações humanos.
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