A senhora de preto

Notícias 21 junho 2017  •  Tempo de Leitura: 2

O meu filho Filipe perguntou porque tinha de ser eu a ir para Pedrógão. Respondi que era o dever. A missão. Perante mim e perante o jornal que represento. Parti com um adeus. Cheguei ao IC8 e já estava cortado. Esperei e fiz nova tentativa. Consegui. E com os máximos galguei a serra até ver o clarão ao longe. Com curvas e rectas entrei numa aldeia. Velhos estavam sentados. À espera. Meti pelo caminho que me levava às luzes azuis. Ali estava ele. O monstro. Assobiava e dançava numa atitude de gozo. Os soldados da paz e das aflições gritavam. Os velhos continuavam à espera. E depois, aquela senhora de preto. Nunca mais a esquecerei.

 

Na varanda da sua vivenda paga com suor e músculo, assistia calma e pacífica ao dançar do monstro. Ali mesmo, a uns 50 metros. O monstro arranhava os céus e ela continuava serena. Nunca mais a esquecerei. Os bombeiros gritavam e as fagulhas vermelhas entraram no meu carro. Entrei e acelerei. Tremia ao descer o serpenteado da serra. Pensava na mulher de negro. Tentei ligar para casa. Não tinha rede. E a noite foi assim. De crianças a chorar e bombeiros a partir e a chegar. Homens transpirados e muitos jovens. Todos preocupados. E de repente, nas barbas do quartel dos bombeiros de Figueiró dos Vinhos, começam a chover fagulhas vermelhas. O monstro provoca.

 

E depois de beber quatro galões, parti ainda de noite para a estrada da morte. Um carro de portas abertas. Fumo. Chamas já sem força. Mais um carro. Mais outro. Um camião. As luzes azuis da Polícia Judiciária. E o céu começa a clarear envolto em fumo denso. E eu descubro o horror.

 

Sozinho. Sempre em silêncio. Em respeito. A GNR manda-me parar. Viro à esquerda. E na minha direita, amontoados no alcatrão, corpos de formas estranhas esperam por alguém.

 

Acelerei e chorei. Só parei na aldeia da senhora de preto. A casa estava salva e a varanda não estava chamuscada. A senhora de preto continua serena.

 

[Adriano Miranda | ©Público]

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