AIS: Uma vida nas sombras
A vida de Shafique Masih mudou no dia 31 de Maio de 1998 quando uma multidão atiçada pelos gritos dos altifalantes das mesquitas se reuniu junto à sua casa em Faisalabad, no Paquistão. A acusação era simples. Tinha insultado o profeta. Nesse dia, nesse instante, começou um verdadeiro purgatório para este humilde cristão. Desde então, vive escondido com medo de ser descoberto, de ser apontado outra vez pelo dedo acusador das multidões em fúria
De nada valeram os seus argumentos, dizer que tudo não passava de um mal-entendido, que aquela era apenas uma história inventada pela inveja do seu sócio, o muçulmano Majeed. “Acusou-me de ter participado nas manifestações contra a lei da blasfémia e de ter falado depreciativamente sobre o profeta Maomé.” Era mentira. No entanto, no bairro, para a multidão sedenta de vingança, não havia outra verdade. Culpado antes de ser julgado, Shafique salvou-se pela coragem de vizinhos que o esconderam numa escola e chamaram as autoridades. Mas depressa o descobriram. Já se escutavam tiros quando chegou a polícia. “Com medo de um ataque à esquadra, levaram-me naquela noite para a prisão central de Faisalabad.” Foram três anos na cadeia por um crime de blafémia que não cometeu. Foram intermináveis três anos. Foi um tempo de medo que ainda hoje atordoa a memória de Shafique Masih. Por mais de uma vez tentaram assassiná-lo. Por mais de uma vez, os próprios guardas incentivaram para que se cumprisse ali, na prisão de Faisalabad, a sentença de morte que o juiz entendeu não dever aplicar. “Foi um inferno”, recorda Shafique à Fundação AIS. “Deixavam deliberadamente a fechadura da minha cela aberta para que alguém me pudesse atacar…”
Pesadelo sem fim
O pesadelo continuou mesmo depois de ter sido libertado em 2001. Ninguém se esquecera da sua história. Todos conheciam o seu rosto, sabiam o seu nome e queriam vingança. Sempre vingança. “Fui acolhido por um sacerdote que cuidou de mim como um filho e cuidou de todas as necessidades da minha família…” Dois anos depois, em 2003, com o apoio da Comissão Nacional de Justiça e Paz do Paquistão e da Fundação AIS, Shafique foi transferido, com a família, para uma casa-abrigo num bairro residencial. “Quatro dos meus filhos nasceram aqui. Os mais novos, gémeos com 12 anos, ajudam-me na oficina pois tenho uma catarata no olho esquerdo.” Shafique continua a ser soldador. É a sua profissão. O negócio, que nunca foi próspero, está agora quase moribundo. É uma consequência também da pandemia do coronavírus. A escassez do negócio não lhe permite deitar mãos às obras que gostaria de fazer em casa. As chuvas da monção do ano passado fizeram desabar a parede do quintal. O terreno ficou inundado com a água dos esgotos e a casa de banho precisa de ser concertada. Mas, apesar de tudo isso, aquela casa será sempre um quase paraíso quando comparada com a cela na prisão de Faisalabad, onde viveu encolhido pelo medo. Essa é uma memória que ainda o assusta, que perturba. Praticamente há vinte anos que Shafique não sabe o que é viver em tranquilidade. Até as visitas aos irmãos, que vivem na aldeia de Bagywal, são um risco. “Só viajo até lá de noite…” O medo nunca mais o abandonou, está presente nos pormenores mais pequenos do quotidiano. Em qualquer altura alguém pode passar por ali, pela oficina, e apontar-lhe o dedo. Os gritos dos altifalantes das mesquitas que espicaçaram o ódio da multidão que se reuniu com varapaus e tochas junto à sua casa há vinte anos continuam a atordoar-lhe os sentidos. Há praticamente vinte anos que Shafique vive nas sombras da clandestinidade. É um cristão perseguido pela intolerância.