O valor do trabalho
O conceito de pais-multibanco está a pegar… e o desfasamento entre o conforto em que muitos adolescentes vivem e o valor do trabalho que proporciona todas essas benesses é cada vez maior. Basta só pedir (ou exigir) porque o pai paga
Há dias, numa consulta, uma jovem de telemóvel ligado, mesmo depois de os pais, timidamente, lhe dizerem para desligar, estando-se ela completamente nas tintas para o que eles diziam, e de eu próprio me ter imposto, aí com um bocadinho mais de sorte, dizia que não entendia porque é que não lhe davam o telemóvel e que precisava dele. “Para quê?”, perguntei. Ela olhou para mim, para os pais, e disse: “Para ao menos estar a ver o que os meus amigos postam no Insta ou ver o que há no Face… Podem estar a passar-se bué de coisas e eu aqui…”
Os pais abriram a boca para, durante largos minutos, desabafarem, dizerem que não conseguiam fazer nada dela (entretanto, já a mãe, para a calar, lhe tinha dado o seu próprio telemóvel) e que estava ligada todo o santo dia à internet.
Perguntei aos pais o que é que aquela adolescente, em férias desde meados de junho, iria fazer até às aulas. “Nada”, foi a resposta. “Está em casa e irá connosco para a aldeia duas semanas, que é o que podemos tirar lá na loja.” A miúda olhou sobranceiramente para os pais e disse: “E já que tenho de aturar esta seca, ao menos podiam comprar-me o novo iPhone! Sinto-me uma nerd, com uma coisa tão cota.”
Resolvi acabar com aquela conversa e disse à miúda que a queria observar, e quando ela estava deitada na marquesa, depois de lhe medir a tensão arterial, deixei-a lá, com o aparelho colocado, e peguei no meu telemóvel e fingi estar a ligar-me à net.
Passado um bocado bem largo em que os pais e ela mantiveram o silêncio, ela reagiu: “Eh! Então? Posso sair daqui?” Fiz um gesto a pedir silêncio e disse: “Não, não podes que ainda não acabou. Mas agora tenho de ver o que os meus amigos colocaram no Face e ainda responder a umas coisas no WhatsApp.”
Consegui manter-me no telemóvel enquanto a via cada vez mais perdida e irritada, até que disse: “E não é a altura da minha consulta? Acha bem estar com o telemóvel na minha consulta? Está a dar cabo dela e a atrasar-me.”
Pousei o telemóvel e disse: “Ora viva quem acordou! Pois a primeira a tentar dar cabo da tua consulta e atrasá-la foste tu porque, que eu saiba, desde que aqui chegaste, não se falou de outra coisa nem tu largaste o telemóvel.” E aproveitei para perguntar, enquanto retomava a consulta: “O que vais fazer nas férias?” Ela olhou para mim com ar triste (não parecia a mesma miúda arrogante e pespineta de há minutos) e exclamou: “Não tenho nada para fazer!” Enfim, perante a passividade total dos pais, verifiquei que, de facto, aquela jovem não tinha mesmo nada para fazer. Não lia um livro, não tinha um trabalho nem se encontrava com os amigos porque viviam em locais distantes, ou seja, apenas lhe restavam os ecrãs como entretenimento e comunicação. Três meses, salvo duas semanas em que, na aldeia, tudo seria provavelmente igual.
Porque não um trabalhinho nas férias? Os jovens de hoje dão por adquirido terem uma série de coisas, desde as férias (merecidas) aos telemóveis, iPads, acesso à internet e tudo o mais. Vivem (e ainda bem), salvo raras exceções, com níveis superiores de conforto, disponibilidade de bens alimentares, consumo e lazer. Frequentam a escola e os pais ainda lhes proporcionam atividades lúdicas, que muitos tratam como um frete, apesar de terem sido eles a dizer que as desejavam.
Como o futuro reside longe, e ainda por cima lhes é dito ser tão imprevisível, muitos, mas mesmo muitos, nem se dão ao trabalho de pensar nele, acreditando que “choverá” por certo um emprego ou qualquer coisita, ou que os papás continuarão a alimentá-los até aos confins dos tempos, pagando-lhes de bom grado as contas dos telemóveis, as roupas de marca que exigem e tudo o mais.
Pois bem… estou em crer que o que está a acontecer é o descrédito do valor do trabalho. O trabalho como dignificação da pessoa, fonte de rendimento, possibilidade de adquirir bens de consumo e de conforto (são os pais que trabalham, claro, para os adolescentes usufruírem das coisas…) ou realização social de uma pessoa integrada na comunidade.
Acabadas as aulas e os exames, e com o bom tempo e os dias prolongados, felizmente, muitos adolescentes começam a pensar em fazer algum tipo de trabalho para ganharem “uns trocos” ou para, simplesmente (e muito positivamente), ajudarem os pais e outras pessoas.
Aprovo totalmente que os jovens, no seu horário de lazer, façam recados e tarefas pelas quais podem até ser remunerados. Fazer jardinagem, distribuir jornais, passear cães, lavar o carro, ajudar a limpar a casa, colaborar com as juntas de freguesia no apoio aos idosos acamados, ajudar em associações de proteção animal, a dar comida ou fazer companhia, apanhar fruta das árvores, fazer babysitting… tanta coisa pode ser feita! Os restantes exemplos ficam ao vosso critério e imaginação – as escolas e as autarquias deveriam ter programas que facilitassem este “dar valor ao trabalho”.
Por outro lado, para muitas famílias, o auxílio que os adolescentes podem dar é importante; sendo parte do agregado, não deverão estar ausentes desse processo: quem come e vive na casa dos pais tem de contribuir para a “causa familiar”, mesmo que isso implique tirar o rabinho do sofá e os olhos do telemóvel, do tablet ou da televisão.
Isto não é trabalho juvenil! É aprendizagem social e até profissional, e reverterá a favor desses adolescentes, mais tarde, no seu percurso de vida.
Andamos a tratar os adolescentes de uma forma esquizoide: ora os colocamos horas e horas em escolas onde são sujeitos a um ensino maçador, repetitivo, em que muito se espreme e tão pouco sai, em que não há ligação entre as disciplinas e, pior, entre estas e a vida real e os percursos de vida futuros; ora lhes damos todas as mordomias, sendo por vezes capachos deles e não instituindo o valor do trabalho como um dos valores essenciais da humanidade. A adolescente que mencionei no início deste texto não fazia a menor ideia de que o que tinha era fruto do trabalho dos pais e achava “indecente” eles só tirarem duas semanas de férias, mas não se interrogava sobre as razões para tal ou se poderia ajudá-los na loja. O conceito de pais-multibanco está a pegar…
Chegadas as férias, e além do descanso, gozo, reposição do sono, saídas e conversa com amigos, desporto, leitura (tão pouca, infelizmente…), praia, TV, redes sociais e tanta outra coisa, considero fundamental haver “uns minutos” para pequenos trabalhos que não deslustram ninguém e até podem mostrar aos jovens que o conforto e a facilidade em que vivem são circunstanciais, efémeros, e que sem o valor do trabalho se arriscam a perder tudo e a não chegar a parte alguma.
[©Mário Cordeiro]