A heresia do perdão
Depois de um braço de ferro silencioso, dezenas de teólogos e padres conservadores entregaram este fim de semana à Associated Press uma carta de 25 páginas em que emitem uma "correção filial" ao Papa Francisco. O documento foi assinado por 62 pessoas de 20 países, mas está aberto a mais subscritores que concordem com a repreensão ao Papa por "propagação de heresias". A principal? Ter manifestado, na exortação apostólica "Amoris Laetitia", abertura aos católicos divorciados que voltaram a casar.
A figura da correção filial não era usada desde o século XIV. Em contraponto aos analistas que têm considerado que a renovação anunciada com a chegada de Francisco ao Vaticano ficou por cumprir, não haverá sinal mais evidente do quanto, afinal, as suas posições têm mexido na Igreja. Mais do que nas contas ou no estilo de vida faustoso dos responsáveis eclesiásticos, neste caso mexem onde é particularmente relevante: na vida das pessoas.
Dirão milhões de não católicos e não praticantes que se trata de questões internas da Igreja, para as quais a sociedade e a Comunicação Social olham de forma cada vez mais desinteressada. O alcance das mudanças em curso é, contudo, muito maior do que parece. Não apenas para quem tem fé e assim vê de novo abertas portas durante séculos fechadas a cadeado. Mas para tanta gente que, culturalmente, foi influenciada por uma religião com a dominação da católica.
O que está em confronto, nas posições que agora se manifestam publicamente, não é apenas a conceção do sacramento do matrimónio ou um princípio teológico. É toda uma visão das relações humanas que ao longo dos séculos colocou completamente a tónica na culpa, relegando para plano muito secundário o perdão e o acolhimento.
Mergulhando na Bíblia, Jesus Cristo é alguém que se senta à mesa dos pecadores, perdoa o cobrador de impostos que enriqueceu por vias tortuosas, arranca a mulher adúltera à pena de morte e está sempre, sem exceção, do lado dos fracos. Historicamente, a Igreja fez demasiadas vezes o inverso. E com isso contagiou uma forma de ser que se foca social e culturalmente no apontar de dedo às diferenças, e menos do que devia no respeito pelo outro. As religiões influenciam inequivocamente o meio em que intervêm. É pena que a laicização nos leve a ignorar debates que acabam por nos tocar, mesmo que nem o notemos.
[©Inês Cardoso]