“Se virem algo errado, falem”, pede sobrevivente de Auschwitz

Notícias 27 outubro 2017  •  Tempo de Leitura: 11

Werner Reich ainda não tem a certeza do que aconteceu à mãe. A última vez que a viu foi pela janela de uma cela, em Graz, na Áustria, depois de ter sido preso pelos nazis, na antiga Jugoslávia, em 1943. “Eu estava numa cela no 3.º piso, olhei pela janela, para o pátio e vi a minha mãe com outras mulheres. Nunca mais a vi.” À plateia silenciosa que o ouve, dirá ainda que a mãe “morreu num campo [de concentração]”, mas ao PÚBLICO confessa o que já dissera numa entrevista guardada nos arquivos norte-americanos do Holocausto - que nunca se esforçou verdadeiramente para descobrir o que acontecera à mãe. “Tudo o que sei é que ela morreu num campo, não quis ir mais longe. Gosto de acreditar que ela morreu de ataque cardíaco, numa cela. Vi o pior do pior e não quero colocá-la nessas situações”, disse.


Com 90 anos, a voz não treme ao sobrevivente do Holocausto quando fala para a plateia que transborda para o exterior do auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. Os 500 lugares do auditório estão cheios, bem como as escadas, o chão junto ao palco e o exterior da sala, levando a que os reposteiros verdes fossem abertos para que, quem ficou do lado de fora, pudesse ver o homem a quem a voz não falha, mas cujas mãos tremem sempre que pega no copo com água para tentar afastar a tosse que o ataca de vez em quando. “Tenho um pequeno sapo na garganta, se tiver sorte, transforma-se numa bela princesa”, brinca ele, arrancando uma gargalhada da plateia.

 

A presença de Werner Reich ali nasceu de um pedido do mágico Luís de Matos à UC para que o recebesse. Porque o sobrevivente do Holocausto também é mágico amador, uma paixão que começou nos beliches imundos de Auschwitz-Birkenau, e quando o ilusionista português ouviu falar da sua história, convidou-o para vir a Portugal e participar no programa televisivo que conduz. “Ele disse-me: ‘Eu vou, mas com uma condição. Tem que me arranjar uma conferência numa escola’”. Porque desde que foi avô, Werner sentiu a necessidade de começar a contar o que vivera durante a Segunda Guerra Mundial. A primeira palestra foi há 25 anos, já o primeiro neto era crescido. Por cá, esteve em Coimbra e esta quarta-feira estará em Braga, na Escola Secundária Alberto Sampaio, para contar como foi ser judeu e sobreviver ao regime de Adolf Hitler.

 

1171210 


Dois anos sem sapatos

 

Werner Reich nasceu em Berlim, em 1927. A família vivia de forma desafogada, até Hitler chegar ao poder, em 1933, e o pai do menino de seis anos perder o emprego. Werner, os pais e a irmã mudaram-se para Zagreb, na então Jugoslávia e foi aí que, em 1940, o pai das crianças morreu de doença. No ano seguinte, os nazis invadiam o país e a separação da família consumava-se.

 

A mãe de Werner tinha sido enfermeira na Primeira Guerra Mundial e recebera do exército alemão uma Cruz de Guerra, por ter salvado um grupo de soldados de ser gaseado. Essa medalha levou-a, “como uma pateta, a acreditar que nada lhe aconteceria”, contou o velho de óculos à plateia atenta. Contudo, a mulher não tinha a mesma certeza sobre os filhos, pelo que os escondeu em casa de duas famílias.

 

Werner ficou com um casal que trabalhava para a Resistência, revelando filmes e fotografias anti-nazis. Viveu ali escondido durante dois anos. “Não podia usar sapatos, para que os vizinhos não me ouvissem. Não podia ir à janela, para não correr o risco que me vissem”, conta. Em compensação - e lá volta o sentido de humor - diz que se tornou perito em revelar filmes e fazer ampliações. “Se alguém precisar, é só dizer”, brinca.

 

O que naquela altura lhe parecia pouco mais que uma aventura terminou com uma pancada na porta pelos homens da Gestapo que apareceram, uma manhã bem cedo, para prender o casal que o acolhera e o jovem. Foi levado para uma cela, onde foi espancado, por um homem “que se divertia” a fazê-lo chorar. Dali foi transportado para uma localidade na fronteira com a Eslovénia, onde o enfiaram numa cave infestada de pulgas. Daqui para a prisão em Graz, onde diz ter obtido “a única vingança do Governo alemão”: “Infestei a minha cela e as adjacentes com as pulgas”. A paragem seguinte foi no campo de concentração de Terezin, na então Checoslováquia.

 

“Terezin era um campo completamente diferente dos outros. Era um campo de demonstração”, explica. E isto significava que quando havia visitas de entidades oficiais, como a Cruz Vermelha, tudo no campo melhorava, desde a comida à limpeza. Mas era tudo fachada e a sobrelotação de Terezin, nessas alturas, era resolvida de forma simples: “Enfiavam uns milhares nos vagões e enviavam-nos para Auschwitz”. Um dia, dez meses depois de ter chegado a Terezin, chegou a vez dele.

 

A palestra que Werner Reich ofereceu a quem esteve no auditório da UC foi, sempre, muito concentrada em deixar bem claro o que foi o regime de morte nazi. Quis pôr de lado aquilo a que chamou “cinco erros” relacionados com a guerra - não foram só judeus que morreram, disse; não foi apenas o extermínio de pessoas, mas a tentativa de fazer desaparecer toda uma cultura; não foi só Auschwitz que permitiu que o Holocausto acontecesse e não, os judeus europeus não eram pobres desgraçados que viviam em aldeias perdidas no leste europeu. “Uma enorme percentagem deles vivia nas grandes cidades e eram, provavelmente, das pessoas mais cultas do mundo”.

 

Explicou como estava organizado o campo de concentração e extermínio em território polaco e não teve receio de descrever de forma muito gráfica o que significava partilhar aqueles beliches de três pisos em que se acotovelavam seis homens por esteira. “Às vezes, a plataforma de cima partia e caía no segundo nível e este partia e caía no de baixo e às vezes estas pessoas morriam esmagadas. Havia constantemente urina e fezes a cair de um nível para o outro”. A fraquíssima alimentação — pouco mais que água escura com batatas ou nabos a boiar e um bocado de pão de manhã e à noite, cerca de 400 calorias por dia — provocava desinteria, fraqueza e morte.

 

Werner Reich diz que demorou “três semanas” a perceber o que se passava para lá dos barracões e que o que ouvira à chegada (“daqui a três ou seis meses vais desaparecer pela chaminé”) não era, afinal, uma piada sem sentido. Diz que se sentiu “terrivelmente sozinho”, apesar de ter sido ali que um homem, que dormia numa das plataformas por cima da dele, lhe ensinou o primeiro truque de cartas que aprendeu na vida.

 

Esse homem, Herbert Levin, era um mágico conhecido da época, o Grande Nivelli, e conseguiu sobreviver aos campos graças aos truques com que entretinha os soldados alemães, que o reconheceram. O jovem Werner não sabia quem era o companheiro que lhe ensinou um truque de cartas e só muitos anos depois, já instalados nos Estados Unidos, é que percebeu quem ele era, por um artigo em que se referia que o Grande Nivelli tinha estado em Auschwitz e era descrito o número que lhe tinham tatuado no braço.

 

O jovem judeu ainda enfrentou uma marcha de morte até ao campo de Mauthausen, na Áustria, onde foi libertado pelos soldados norte-americanos em Maio de 1945. Mas antes de deixar Auschwitz, ainda se cruzou com o médico Josef Mengele, autor de terríveis experiências, que gostava de se juntar às selecções feitas amiúde no campo. Num dia, de cinco mil rapazes, seleccionou 89 para viver. Werner foi um deles. Uma selecção totalmente aleatória, feita entre as gargalhadas de alguma piada partilhada com soldados SS.

 

A plateia da UC bebeu cada palavra de Werner em total silêncio. No final, ele revelou-lhes a quinta coisa errada que as pessoas pensam sobre a guerra - que o extermínio foi perpetrado apenas pelos nazis. “Não é verdade. Cada nação que a Alemanha invadiu, com excepção da Bulgária, colaborou. O Holocausto podia ter sido evitado? Claro, se todos os que se limitaram a observar tivessem falado, tivessem dito algo”. Por isso, deixou um pedido recebido com um aplauso prolongado: “Se virem algo errado, falem. Se não dizem nada, porque acham que não vos diz respeito, estão enganados”.

 

Já Werner Reich se tinha calado há muito e um grupo de rostos curiosos continuava à volta dele, a fazer perguntas, a querer cumprimentá-lo. Uma jovem pediu-lhe para lhe dar um abraço. Afastou-se a limpar as lágrimas. Ele continuou a sorrir.

 

Público]

O portal iMissio é um projeto de evangelização iniciado em 2012, que tem tido como objetivo dar voz a uma comunidade convicta de que a internet pode ser um ambiente de evangelização que desafie o modo de pensar a fé. Tem pretendido ser espaço de relação entre a fé, a vida da Igreja e as transformações vividas atualmente pelo Homem.

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail