Ver Jesus passar
DOMINGO XXXI COMUM Ano C
“Procurava ver quem era Jesus,
mas, devido à multidão, não podia vê-l’O,
porque era de pequena estatura.”
Lc 19, 3
Como compreendo a situação do pobre Zaqueu! Esta injustiça de uns serem altos e outros nem por isso que nos faz fugir dos lugares de plateia ou dos assentos marcados no cinema, é uma sina delicada. Pois é precisamente aí, na fila em frente, que virá sentar-se alguém, dois palmos mais alto, a causar-nos torcicolos para ver o filme ou o espectáculo. Devia haver bilhetes por alturas! Encanta-me que, pelo desejo tão forte de ver Jesus, o “pequeno” Zaqueu não desanimou: fez-se “ainda mais pequeno”, e, como um gaiato, subiu a uma árvore!
A pequenez de Zaqueu não era só física: ele era pequeno aos olhos de todos pela profissão de cobrador de impostos que o colocava na categoria dos pecadores. E a altura da multidão pode também significar os muros que, nós, que dizemos acreditar em Jesus, colocamos à sua volta. No condomínio religioso que construímos, no acomodamento e inércia quando escutamos as suas palavras, na distância entre o que dizemos e aquilo que fazemos, na proximidade acomodada a Deus será que deixamos “ver que é Jesus”?
Certamente a multidão de Jericó estava simplesmente “a ver passar” o mestre que tanta fama granjeara. Talvez Ele fizesse algum milagre espectacular, e bem sabemos como as multidões vibram com isso. Muitos sentiriam por Ele a admiração pelas notícias da sua bondade, a curiosidade pelas palavras sábias simples pelas quais anunciava verdades sublimes. Mas todos se espantaram quando Jesus parou junto da árvore onde Zaqueu estava, e lhe anunciou que ia ficar em sua casa. Foi como se caísse “o Carmo e a Trindade”, na expressão tipicamente lisboeta para as desgraças! Não havia em Jericó casas de pessoas respeitáveis, de senhores e senhoras bons cumpridores da Lei e assentos reservados na Sinagoga, onde um mestre tão ilustre poderia alojar-se? Não entendia que o seu gesto era “religiosamente incorrecto”?
Mas Jesus quebrará sempre os protocolos que tentem impedir Deus de chegar a todos. E especialmente aos mais pequeninos, esquecidos, excluídos, explorados, descartados. Não veio Ele “procurar e salvar o que estava perdido”? Quando o amor de Deus chega a quem não O conhecia, o milagre da conversão acontece. Conseguimos imaginar a alegria com que Zaqueu desceu da árvore e recebeu Jesus? Podemos sonhar o que foi o diálogo entre os dois? O que conhecemos é a recriação da vida de Zaqueu. Essa realidade que multidões ou elites, de muitas espécies e feitios, dificilmente experimentamos porque, em vez de acolher Jesus, ainda O queremos colocar ao nosso serviço, a justificar muitos dos nossos comportamentos, a abençoar indiferenças e injustiças.
Ao concluir os trabalhos do Sínodo da Amazónia no sábado passado, o Papa Francisco, convidando a comunicação social a não ficarem presos aos “aspectos disciplinares” do documento final, alertava para um perigo: “Há sempre um grupo de cristãos elitistas que se entretém com questões disciplinares intraeclesiásticas”. E, a propósito citou o poeta Charles Péguy: “Porque não têm a coragem de estar com o mundo, acreditam estar com Deus. Porque não têm a coragem de comprometer-se nas opções de vida do homem, acreditam lutar por Deus. Porque não amam ninguém, acreditam que amam a Deus”. Não basta ficar a ver Jesus passar!