DOMINGO III DO TEMPO COMUM: «DEUS ANDA POR AÍ À PROCURA DE TI»
1. Domingo III do Tempo Comum. Cruzamento de textos num facho de intensa luz, vinda de fora, como a aurora. É o Evangelho de Mateus 4,15-16 que recolhe Isaías 8,23-9,1. No Evangelho de Mateus, esta luz que alumia a sombria Galileia é Jesus. Ventos de morte tinham varrido a Galileia no ano 732 a. C., quando o imperador assírio Tiglat-Pilezer III, na sua expansão para ocidente, invadiu e reduziu estes territórios a três províncias assírias: Galaad, Meguido e Dor, levando para o exílio os seus habitantes judeus e transferindo para ali povos pagãos de outros credos e culturas, para impedir a todo o custo que o judaísmo pudesse ainda prosperar.
2. O Evangelho de hoje (Mateus 4,12-23) refere com precisão que, «quando Jesus soube que João Batista tinha sido preso, retirou-se para a Galileia» (Mateus 4,12), e, «desde então, começou a pregar» (Mateus 4,17a). Uma prolepse e uma surpresa, podemos dizer mesmo um escândalo. A prolepse: ao anotar a prisão de João Batista, o narrador não está tanto a registar um facto histórico, mas mais a desvendar já aquilo que um dia acontecerá também a Jesus. A surpresa e o escândalo: era do sentir comum que o anúncio messiânico fosse feito no coração do judaísmo, em Jerusalém, e não numa região periférica, desprezada e contaminada pelo paganismo, como era esta «Galileia dos pagãos» (Mateus 4,15). É para justificar e iluminar este estranho e inesperado começo, que Mateus se vê como que obrigado a citar por inteiro a passagem apropriada de Isaías 8,23-9,1.
3. Luz de Jesus a iluminar a noite da Galileia. Voz de Jesus a romper aquele espesso manto de silêncio: «Convertei-vos, porque está próximo de vós o Reino dos Céus!» (Mateus 4,17b). Esplêndida Luz, esplêndida Voz, esplêndido Amor de Deus, esplêndida surpresa divina! Ainda antes de nos convidar a que nos interessemos por Deus, a Bíblia mostra que é Deus que se interessa primeiro por nós, tomando a iniciativa de percorrer as nossas estradas poeirentas para nos vir visitar a nossas casas! É esta a maravilha desconcertante do Evangelho!
4. E assim continua no velho texto de Mateus e nas nossas estradas de hoje. Verificação: Jesus caminha ao longo das praias do Mar da Galileia, e vê dois irmãos, Simão e André, ocupados nos trabalhos da pesca, e diz-lhes: «Vinde atrás de mim (deûte opísô mou)!» (Mateus 4,19). A resposta é imediata: «Deixaram logo (euthéôs) as redes, e seguiram-no!» (Mateus 4,20). E andando um pouco mais, viu outros dois irmãos, Tiago e João, que, com o pai, Zebedeu, remendavam (katartízontas) as redes na barca. Também os chamou. E também eles deixaram logo (euthéôs) a barca e o pai, e seguiram-no (Mt 4,21-22).
5. Note-se bem que Jesus desce ao nosso mundo, caminha pelas nossas estradas e vem ter connosco aos nossos lugares de trabalho. E é aí que nos chama. Não espera por nós no cenário sagrado das nossas Igrejas! Não nos obriga a fazer uma inscrição, a preencher uma ficha, a aprender uma doutrina, nem sequer nos entrega um projeto de vida, um guião, uma regra, mas chama-nos a segui-lo («vinde atrás de mim»), e partilha connosco a sua vida, como o Mestre faz com os seus discípulos. Não nos põe a fazer uma espécie de estágio, para que um dia nos tornemos Mestres. Nós permanecemos sempre discípulos, e um só é o nosso Mestre (cf. Mateus 23,8). Não nos coloca num estágio, num estado, num estrado, numa estante, mas num caminho! E um dia mais tarde, ouvi-lo-emos ainda dizer: «Ide!». É sempre no caminho que nos deixa.
6. Mas voltemos a Isaías 8,23-9,3, hoje, como já vimos, entrançado com o sublime Evangelho de Mateus 4,12-23. Visita de Deus. Luz grande para os abandonados. Vida a borbotar das feridas das espadas. Alegria a desenhar a estação das ceifas. As nossas mãos em concha a recolher os dias dados. Deus primeiro e antes. Deus basta. O dia de Madiã é o dia em que Gedeão enfrenta e desbarata as tropas de Madiã com trezentos homens que sabem que a água é um dom de Deus (Juízes 7). E estiveram lá junto da fonte mais trinta e um mil e setecentos candidatos que apenas exibiam a própria força e que pensavam que estavam ali por acaso! Estavam a mais. Foram naturalmente mandados embora.
7. Carl Gustav Jung (1875-1961), um dos pais da psicanálise, mandou esculpir sobre a porta da sua casa, em Küsnacht, na Suíça, esta frase: «Chamado ou não chamado, Deus estará sempre presente». Nunca se vai embora. Fica sempre por perto, à espera de nos abraçar».
8. Continuamos a saborear a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, servida hoje no extrato entrecortado de 1,10-13.17. Sem cedências de qualquer espécie, Paulo aponta à comunidade cristã de Corinto as divisões e rixas que nela se instalaram, e os grupinhos de pertença em que as pessoas se agrupam e reveem. E Paulo propõe aos Coríntios e a nós que, em vez de nos ocuparmos com divisões ou cismas (schísmata), nos tornemos «remendadores» (katêrtisménoi: part. perf. pass. de katartízô) (1,10), que é sintomaticamente o mesmo verbo em que se ocupavam os discípulos hoje chamados, que estavam a remendar (katartízontas: part. presente de katartízô) as redes (Mateus 4,21). Aí está um novo e belo ministério: «remendadores» da comunidade, isto é, fazedores de pontes, estradas, braços e abraços, para que as pessoas, em vez de se separarem e dividirem, se unam e reúnam. E porque circulava também em Corinto uma certa conceção de batismo que criava especiais laços de pertença do batizando em relação a quem o batiza, Paulo adianta bem que a sua missão não é batizar, mas evangelizar!
9. O Salmo 27 pode deixar-nos nos braços de Deus, cantando e decantando a luz e a confiança que de Deus recebemos. Mas também a suavidade, a bondade e a beleza nos encantam. Corolário normal, ainda que sempre de excecional elevação, para este dia e para esta liturgia, que nos deixa sempre tranquilos a brincar à porta da Casa de Deus, sob o olhar atento e carinhoso de Deus.
10. Este Domingo é também, por vontade do Papa Francisco, o Domingo da Palavra de Deus. Portanto, deixemo-nos invadir performativamente, e não apenas informativamente, pela torrente da Palavra de Deus. E deixemos que rasgue em nós novas avenidas férteis e floridas, onde despontem novos e adequados comportamentos. Veja-se a força da Palavra de Deus e a sua ação nos discípulos hoje chamados por Jesus.
Jesus é Deus que desce ao nosso mundo,
Caminha pelas nossas estradas,
Percorre as nossas praias,
Visita as nossas casas,
Vem ter connosco aos nossos lugares de trabalho.
Jesus é Deus que passa, ama e chama.
Mas não nos chama a responder a um inquérito,
A preencher uma ficha,
Responder a uma entrevista,
Fazer uma inscrição,
Pagar a matrícula,
Aprender uma doutrina.
Não é como os escribas que Jesus ensina ou examina.
Nem sequer nos entrega um projeto de vida,
Uns apontamentos, um guião, caneta, tinta, mata-borrão.
Chama-nos apenas a segui-lo no caminho:
«Vinde atrás de Mim!», é o desafio,
E partilha logo ali connosco a sua vida toda,
Como uma dança de roda,
Como uma boda.
Não nos põe primeiro a fazer um teste,
Não nos ama nem chama à condição,
Não tem lista de espera,
Não nos põe num estágio,
Num estado,
Num estrado,
Numa estante,
Mas num caminho!
E um dia mais tarde,
Ouvi-lo-emos dizer ainda: «Ide!»,
Novo e imenso desafio.
É sempre no caminho que nos deixa,
Mas não nos deixa sós,
Vai sempre connosco,
Acompanha-nos,
Não apresenta queixa,
Não paga ao fim do mês,
Pede e dá tudo de uma vez.
Vem, Senhor Jesus!
Vem e ama!
Vem e chama por mim outra vez!