DOMINGO VI DO TEMPO COMUM: «NÃO MATARÁS!»

Liturgia 16 fevereiro 2020  •  Tempo de Leitura: 9

1. Continuamos a escutar, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime Discurso da Montanha, hoje as quatro primeiras das famosas «seis antíteses» (Mateus 5,17-48), cujos temas são: o homicídio, o adultério, o divórcio, o perjúrio, a lei de talião, o amor ao próximo. Ouviremos então, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime dizer de Jesus sobre os primeiros quatro temas: homicídio, adultério, divórcio e perjúrio (Mateus 5,17-37), enquanto nos preparamos para ouvir no próximo Domingo, VII do Tempo Comum, os últimos dois importantes temas: a lei de talião e o amor que a todos devemos (Mateus 5,38-48).

 

2. Não nos esqueçamos que continuamos na Montanha, nas alturas, pois há certas maneiras de viver e de sentir que só podem ter o seu habitatnas alturas. O Papa S. João Paulo II escreveu na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte [2001], n.º 31, que perguntar a um catecúmeno se ele quer receber o batismo é o mesmo que perguntar-lhe se ele quer ser santo, e fazer-lhe esta última pergunta é colocá-lo no caminho do Sermão da Montanha. E logo a seguir, na mesma Carta e no mesmo número, S. João Paulo II define a santidade como a «”medida alta” da vida cristã ordinária». É, portanto, imperioso que o cristão aprenda a ganhar altura, não para se separar dos caminhos lamacentos do quotidiano, mas para os encher de um amor maior.

 

3. Cada uma das «seis antíteses» abre com as palavras de Jesus: «Ouvistes o que foi dito […]; porém, eu digo-vos». Com esta técnica de contraponto, Jesus não quer que se desperdice nada do Antigo Testamento; quer antes enchê-lo, levar quanto aí é dito, que é Palavra de Deus, ao seu ponto mais fundo e mais alto. Por exemplo, quando ouvimos o que foi dito: «Não matarás!», não basta determo-nos no limiar do assassínio, como manda a letra, de acordo com uma leitura literalista e legalista da Palavra de Deus. É preciso ir mais fundo e mais alto: mondar todas as raízes da ira, do ciúme, da inveja, do ódio, desprezo e desamor, e encher todos os regos e cicatrizes de mais amor, mais amor, mais amor, só amor. Não se trata apenas de travar a fundo no último momento, evitando o acidente; trata-se de viver permanentemente a nova cultura do amor. Neste sentido, escreve S. João, com ponta fina de diamante, não na pedra ou no papiro ou no papel, mas no nosso coração meio embotado e engessado: «Quem não ama o seu irmão, é homicida» (1 João 3,15).

 

4. «Não matarás!». Palavra fortíssima e de extrema mansidão, inscrita no Rosto ou viso nu do Outro, de qualquer outro, pobre e nu e senhor, pobre porque nu, e senhor porque pobre e nu, que de improviso te visita e te elege, e te ordena, de forma imperativa e não optativa, entregando-te uma palavra que é um mandamento, que não te deixa em estado de decisão, que não se dirige, portanto, à tua liberdade de escolha, mas à tua responsabilidade, pois te manda responder por ele, pela sua vida, resposta que não podes adiar nem delegar. É a ti que ele elege, é a ti que ele dirige o mandamento: «Não matarás!», concedendo-te apenas responder, obedecendo, e não decidir o que fazer. Reclama a tua responsabilidade: por muito que te custe compreender, trata-se de uma responsabilidade anterior à liberdade! Coisa simples, que só não compreendes se não quiseres. É o “bom dia” antes do cogito. Atentos, porque o rosto pobre e nu do outro é o único soberano que existe. Pode estar em coma à beira da estrada, na soleira da tua porta, na cama de um hospital. Não tem nenhum poder (não te aponta uma arma, não tem dinheiro para te seduzir ou para te pagar…), e, todavia, obriga-te a debruçares-te sobre ele. Vês, então, como ele é soberano? É o único que te pode libertar dos cadeados da tua Sinngebung (da tua capacidade de produção de sentido preliminar e subjetivo). Os que têm pistolas e dinheiro, na verdade, pouco podem: apenas te podem escravizar! Não te podem libertar! São tiranos e prepotentes. Não são soberanos!

 

5. E assim também o adultério, o divórcio, o perjúrio. Qualquer destes pontos representa o fim de um amor, que é sempre um acontecimento dramático. Veja-se atentamente, neste mundo cinzento e insípido, sem sol e sem sal, em que vivemos, o drama imenso que cada divórcio comporta. Mas, para encher de sentido o «porém, eu digo-vos» de Jesus sobre estes pontos precisos, também não basta viver uma vida cinzenta e mentirosa e evitar em cima da linha chegar ao adultério, ao divórcio ou ao perjúrio. É necessário encher a vida inteira de amor, de mais amor, só de amor.

 

6. É preciso levantar a vida, o coração, até ao cimo do monte das Bem-Aventuranças, e deixar-se deslumbrar, como a multidão, com este novíssimo, em conteúdo e método, ensinamento de Jesus (Mateus 7,28-29).

 

7. O belo Livro de Jesus Ben-Sirá, de que hoje recebemos a deliciosa lição de 15,16-21, lembra-nos que os mandamentos de Deus estão sempre cheios apenas de bondade. Serve essa fortíssima afirmação para nos advertir que a nenhum de nós foi dada licença para pecar, nem sequer para produzirmos coisas vãs e ocas, sem ponta de sal ou de sentido. Vale ainda saber que este livro delicioso, de tom edificante, terá sido escrito por Jesus Ben-Sirá em hebraico no primeiro quartel do século II a. C., aí por volta dos anos 180-175, tendo sido depois lido e muito apreciado por um seu neto, no Egito, parece que no ano 132 a. C. Tanto o neto apreciou o texto do seu avô, que resolveu traduzi-lo para grego, para possibilitar que muitos outros o pudessem ler também com proveito. Bela também esta ligação entre as gerações.

 

8. S. Paulo fala-nos na lição de hoje da Primeira Carta aos Coríntios 2,6-10 da Sabedoria de Deus. E lembra-nos que a Sabedoria de Deus não está à venda em nenhum mercado deste mundo, nem está na posse dos senhores deste mundo. E precisa ainda que a sabedoria dos senhores deste mundo, que é sempre a sabedoria orgulhosa e arrogante que nos pode fazer senhores do mundo, mas nos conduz sempre fatalmente para a ruína. A verdadeira sabedoria, a de Deus, é depositada no nosso coração pelo Espírito de Deus, dando-nos assim acesso, por graça, às riquezas divinas que Deus, desde sempre, tem preparadas para nós. Em vez da ruína, fica aberta diante de nós uma maneira nova de viver e de morrer. Chama-se santidade, «medida alta» da vida cristã ordinária.

 

9. À nossa frente estão sempre os caminhos do Senhor, que devemos calcorrear com alegria e felicidade recebida e dada, enquanto cantamos a imensa partitura do Salmo 119, admirável composição de 1064 palavras hebraicas reunidas, repartidas, repetidas, entretecidas e entretidas à volta da Palavra de Deus que alumia a nossa vida. Blaise Pascal recitava este Salmo todos os dias.

 

Ensina-me, Senhor, a subir mais alto,

Como os lírios do campo,

Como os passarinhos.

Ensina-me a ser santo

Como os pequeninos.

Só sendo assim me posso sentar à tua mesa,

Onde se come e se reza,

E o ambiente é familiar e quente

Como uma lareira acesa.

 

Até as aves do céu vêm abrigar-se em tua casa,

Comer à tua mesa.

Aqui fazem os passarinhos os seus ninhos,

E até os bandos de estorninhos

Encontram aqui o seu descanso.

 

Dá-nos, Senhor,

Em cada dia

Da nossa vida

Às vezes escura,

A água pura da tua luz e alegria,

Que nos enche de paz e nos sacia.

O Bispo D. António Couto publica os artigos no blogue Mesa de Palavras

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