Entre o ser e o parecer
DOMINGO VIII COMUM Ano C
“A boca fala do que transborda do coração.”
Lc 6, 45
Quando ainda não ultrapassámos um dos maiores desafios da humanidade neste primeiro quartel do século 21, que é a pandemia da Covid-19, já tememos o eclodir de uma guerra em solo europeu, onde existe paz há mais de 70 anos. Bem dizia o velho Joaquim: “Os homens quando não têm problemas grandes arranjam-nos!” Confiantes de que a pandemia nos tinha trazido uma dose suplementar de fraternidade e compromisso pela vida (mesmo sabendo que nunca “estivemos no mesmo barco”), é doloroso reconhecer que somos especialistas em criar sofrimentos evitáveis. E toca-nos especialmente porque é bem mais perto do que as “numerosas guerras” que grassam pelo mundo!
Sérgio Godinho canta numa das suas canções: “…entre o ser e o parecer / Entre ser e o parecer não escolhas o espelho errado / Dos de vidro prateado...”. “Ser ou parecer” lembra-nos as pessoas muito preocupadas em aperfeiçoar a sua aparência para dar uma melhor imagem, tentando que ninguém dê pelo engano. E não caem nisso apenas políticos e outras figuras públicas: também nós nos sentimos tentados a fazê-lo. Mais preocupados em melhorar exteriormente e aparentar ser boas pessoas, não nos esforçamos em melhorar por dentro para oferecer o melhor de nós mesmos. Na exterioridade de uma guerra que pode destruir vidas e bens, que interesses ocultos se movem?
Jesus conhece a natureza humana, facilmente tentada pelas aparências. Não adianta fingir que se ama, que se acredita, que se confia. Mais cedo ou mais tarde a verdade “vem ao de cima, como o azeite”. Em pequenas parábolas adverte os discípulos para a autenticidade de vida: cego é aquele que se considera dono da verdade, acima dos outros, e se julga mais perfeito que o seu mestre; é também aquele que facilmente vê os defeitos do outro e os aponta, esquecendo-se dos seus e de amadurecer interiormente; as boas árvores dão bons frutos, que não precisam de “maquilhagem” para parecer bonitos. É contra a hipocrisia, essa arte da representação, de parecer aquilo que não se é, que Jesus convida à sabedoria do coração, revelada nas palavras e obras de cada pessoa.
Cultivar o bom tesouro dentro de cada um é condição para deixar de viver de aparências. Se as palavras revelam a abundância do coração serão elas a interrogar-nos sobre as nossas escolhas. Fingir pode produzir algumas alegrias, mas serão sempre pequenas e passageiras. E impedem o reconhecimento da beleza e da grandeza, únicas e irrepetíveis de cada um, que só Deus bem conhece. Ele que bem tenta dar-nos a paz, para deixarmos de guerrear entre o que somos e o que tentamos parecer! E não é bom acreditar que o seu conhecer-nos é amar-nos como somos?