A voz que fala nas vozes
DOMINGO VII COMUM Ano A
“Ele faz nascer o sol sobre bons e maus
e chover sobre justos e injustos.”
Mt 5, 45
A voz é das primeiras expressões que temos ao nascer, quase sempre num grito de choro. E será assim durante algum tempo porque temos fome, porque temos dor, porque nos incomoda algo, provocando uma aflição nos pais, sem manual de instruções a que recorrerem. Também, dizem os pediatras, começamos a reconhecer, ainda no seio da mãe, algumas vozes que nos falam. Gritos, choros, palavras, cantos, e silêncios que também dizem muito, são apelos lançados do mais fundo de nós. Haja quem escute!
A prioridade da escuta tem sido uma das condições que o Papa Francisco tem apresentado nas diversas fases do Sínodo dos Bispos, a decorrer na Igreja em todo o mundo, e que culminará em 2024. Este dinamismo não é apenas um método para um trabalho, mas é essencial à vida de todos, às nossas relações e projectos, à humanização do mundo em que vivemos. E escutar quem sofre tem de estar em primeiro lugar. Para prevenir e evitar as causas dos sofrimentos, para exercer uma justiça responsabilizante e reparadora, para “procurar e salvar o que estava perdido”.
“Dar voz ao silêncio” é o título do Relatório da Comissão Independente para os Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa que foi apresentado na passada segunda-feira. Enquanto escutava a apresentação e alguns testemunhos, sentia-me a ouvir a voz de Jesus: “…quantas vezes o fizestes a um destes irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Cada voz é uma pessoa única, amada por Deus, e que tão desumanamente foi violentada. Como salvar o que se perdeu? Pedir perdão e concretizá-lo em atitudes de escuta, de condenação dos criminosos, de auxílio reparador, e primariamente de prevenção para que “nunca mais aconteça” é essencial. Numa entrevista sobre o drama dos abusos sexuais a menores, José Carlos Bermejo, religioso espanhol, dizia: “sonho que o olhar [sobre os abusos] seja para humanizar, não só para reafirmar a condenação. Humanizar é gerar processos preventivos, restaurativos, de acompanhamento a todas as vítimas e violentadores, de modo que possamos reconstruir o mundo relacional e façamos desaparecer do planeta esta forma de não respeitar a dignidade do ser humano.”
No monte das Bem-aventuranças Jesus propôs aos que o escutavam, uma plenitude da Lei que parece escandalizar. Do “matar” que começa no íntimo de nós mesmos, ao “amar” os inimigos que sentimos impossível. Do “olho e da mão direita” que “cometem” o mal (e devem ser arrancados e cortados!) à “oração” pelos que nos perseguem. Até onde quer ir o amor que a voz de Jesus, há mais de dois mil anos, nos pede para vivermos?