«Nunca estou às escuras!»

Liturgia 19 março 2023  •  Tempo de Leitura: 3

DOMINGO IV QUARESMA

“Se é pecador, não sei.

O que sei é que eu era cego e agora vejo.”

Jo 9, 25

 

Vi este testemunho num programa de televisão sobre ‘o mundo dos cegos’. Uma senhora, cega de nascença, com cerca de sessenta anos, dizia, mais ou menos, isto: “Eu gosto muito da vida. É bom viver. Não percebo como é que as pessoas se aborrecem da vida. Eu nunca estou às escuras. Só quando entro num túnel é que deixo de ver. Eu nunca me sinto na escuridão.”

 

Costuma dizer o povo que “cego não é quem não vê, mas quem não quer ver”. E não querendo fazer “discurso barato” acerca do tema, porque dói pensar na cegueira, minha e de outros, pergunto-me se, às vezes, não somos também “cegos” quando julgamos ver. Sim, o nosso tempo sedento de imagens, pronto a sacrificar a verdade em troca de “algo que se possa ver”, cultivando mais a “imagem pessoal” do que a própria pessoa, corre o risco de cegueira! Porque a experiência de ver apela a uma profundidade além da “casca” das coisas. “Ver o invisível” torna-se o grande desafio do ser humano. A fé, o amor, a amizade, a justiça, a verdade, manifestam-se em atitudes, mas permanecem invisíveis na intimidade de cada um.

 

Claro que isto pode levar a desconfiar de tudo e de todos. Porque é preciso “trabalho” para ir além das aparências, é fácil acomodarmo-nos às evidências e aos julgamentos precipitados. Ou então andar “embriagado” pelo “brilho das luzes”! Mas esse esforço também conduz à reconciliação e à paz de quem distingue a luz das trevas, e continua em atitude de atenção e escuta. Porque há um olhar que sente e ouvidos que escutam por dentro das pessoas. Não será aí que é possível “gostar muito da vida” mesmo quando parece vivermos uma desgraça?

 

Samuel torna-se humilde ao perceber que as escolhas de Deus não são as suas. O cego de nascença passa da cegueira à visão, e desta à fé. Sem reconhecer a cegueira que o mal e o pecado criam em nós, sem o lodo (feito de terra, “húmus”, sinal de humildade) e a água que lava (sinal do Baptismo e da Reconciliação) como é possível entender o encontro com Cristo e acreditar n’Ele? E quem acredita torna-se também luz, produz frutos de luz: “bondade, justiça, verdade”. Estes frutos tão desejados por todos e que, se estivermos atentos, brotam onde menos se espera, até em nós próprios! Só não é possível brotarem em quem prefere continuar “dentro do túnel”!

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