Livro da Semana: «Uma Trama Divina. Jesus em contracampo»
«Não há história sem trama» - diz o Papa Francisco no Prefácio. «Deus entrou na trama das vicissitudes humanas com uma história que pode ser contada: Jesus comove-se, aproxima-se, toca na dor e na morte e transforma-as em vida. Precisamos neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e de grandes polarizações, de paradigmas rígidos, de graves desafios a nível climático e económico precisamos da genialidade de uma linguagem nova, de histórias e imagens poderosas... de ver Jesus.»
Antonio Spadaro. É natural de Messina (Itália), onde nasceu em 1966. É padre jesuíta, escritor e teólogo. Licenciou-se em Filosofia, na Universidade de Messina, em 1988, logo depois de entrar no noviciado da Companhia de Jesus, onde foi ordenado em 1996, e onde professou em 2007. Em 1994, começou a escrever para a revista La Civiltà Cattolica, e, em 1998, passou definitivamente a fazer parte do seu quadro editorial. É teórico da literatura e especialista em crítica literária. O empenhamento e interesse de Spadaro pelas áreas dos novos meios de comunicação social, leva-o a manter uma bem ativa presença em redes sociais da Internet, através de um sítio pessoal e de dois blogs, sendo um dedicado à ciberteologia e outro dedicado ao escritor americano Flannery O’Connor.
Antonio Spadaro escreve com palavras que se tornam imagens, que contam histórias. E nós leitores, fazemos parte da multidão, dos acontecimentos... Entramos na vida de Jesus e ele nas nossa. Sim, é um filme para ler.
Prefácio do Papa Francisco
QUEM DIZEIS QUE EU SOU?
Para os seus contemporâneos, Jesus faria parte do paradigma do inadaptado, da pessoa que não se adapta, da pessoa desadaptada, que não se ajusta ao que é óbvio. Basta ler nos Evangelhos as reações que os seus gestos suscitavam. Em Marcos, vemos que «os seus familiares saíram a ter mão nele, pois diziam: “Está fora de si!”». Outros, como nos conta Mateus, declaravam-no, abertamente: «Eis um homem comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores.» Às vezes, Jesus tem reações duras, indignadas: derruba as mesas dos vendilhões do Templo, por exemplo. Não se adapta, não se conforma.
Seguindo Jesus no seu caminho, vemo-lo deixar Nazaré, a sua «pátria». Protesta contra aqueles que se sentem tão incluídos a ponto de excluírem os outros, contra aqueles que acreditam que veem claramente a ponto de se terem tornado cegos, contra os que se sentem de tal forma autossuficientes na administração da lei que se tornaram iníquos.
O livro Uma trama divina acompanha-nos na busca de Jesus que caminha, que encontra pessoas ao longo da estrada e que endurece o rosto olhando para a sua meta: Jerusalém.
Quem é? O que quer? Jesus vai de terra em terra ensinando, curando os doentes, consolando os aflitos. As pessoas ficam estupefactas e perguntam quem é Ele. Tal como fez com os seus discípulos, Jesus olha-nos nos olhos e pergunta-nos: «Vós, quem dizeis que Eu sou?» Sinto que me pergunta a mim. Perante a história de Jesus, esta continua a ser a pergunta fundamental que sinto ressoar nas páginas deste livro.
Por vezes, sentimo-nos oprimidos por imagens de Jesus que são, na realidade, mais caricaturas do que retratos eficazes. Temos a tendência para domesticar Jesus, para o tornar amável, mas de um modo que faz com que a sua mensagem se torne inutilmente doce. Dá paz, consola, é «luz suave», como escreveu São John Henry Newman, mas não adormece com fáceis canções de embalar, sobretudo, não anestesia. A sã inquietude insatisfeita e o espanto perante a novidade abrem o caminho à audácia. Não precisamos, assim, de narrativas edificantes, ainda por cima nos tempos difíceis em que vivemos. Este livro elimina-as, evidenciando, amiúde, as sombras e as dificuldades das narrações evangélicas. Jesus veio trazer o fogo à terra. Se ilumina não receia as sombras. E, por outro lado, é verdade que quem cresce num mundo de cinzas não apoia facilmente um fogo de grandes desejos.
Não devemos perder o foco do encontro com Jesus. Para tal, olhemos para o Mestre, sigamo-lo no seu caminho sem o perdermos de vista. Todos o podem fazer, embora nem sempre seja fácil compreender Deus, prever o seu caminho. É belo darmo-nos a compreender a Ele e deixarmo-nos guiar.
Aprendamos a sacudir a poeira que se acumulou nas páginas evangélicas, descubramos o seu sabor intenso. E é este o caminho que somos chamados a fazer: escutar o tom de voz daquele que anunciou as bem-aventuranças, que partilhou o pão com a multidão, que curou os doentes, que perdoou os pecadores, que se sentou à mesa com os publicanos.
A história de Jesus conjuga-se com a dos homens e das mulheres, desperta e revitaliza as energias escondidas, a paixão adormecida pela verdade e pela justiça, os raios de plenitude que o amor produziu no nosso caminho, mas também a capacidade para lidar com o fracasso e o sofrimento, para exorcizar os demónios da amargura e do ressentimento.
A trama é própria da história. Não há história sem trama. Deus entrou na trama das vicissitudes humanas com uma história. E essa história, portanto, pode ser contada. A trama é um tecido de fios. Jesus misturou-se neste enredo. Não há um fio igual ao outro e, às vezes, os fios enodam-se. É na trama das vicissitudes humanas que o reconhecemos «a trabalhar», como escrevia Santo Inácio: Jesus comove-se, aproxima-se, toca na dor e na morte e transforma-as em vida. Ler o enredo da história de Jesus não nos afasta da trama da nossa existência. Pelo contrário, esse enredo convida-nos a olhar para a nossa história, a encontrarmo-nos com ela sem fugir.
É preciso «ver» este Jesus, sentir o seu toque na própria pele, caso contrário, o Filho de Deus, o Mestre, torna-se uma abstração, uma ideia, uma utopia, uma ideologia. Com Ele desenvolve-se um jogo de olhares, mas não só: todos os sentidos são envolvidos. Jesus é ungido de perfumes por uma mulher, come e partilha pão e peixe, toca e cura, escuta os seus interlocutores e responde-lhes.
Abrir os Evangelhos é como olhar por uma câmara de filmar que nos mostra Jesus em ação. O olhar com que Uma trama divina nos ajuda a lê-los parece mesmo o olhar do cinema. Santo Inácio de Loyola, nos seus Exercícios Espirituais solicita que se contemplem os Evangelhos com os olhos da imaginação: com os olhos, não com a abstração mental. Assim fazendo, a história de Jesus entra na nossa história. Olhamos para ela à luz da nossa vida, vemos os rostos, os episódios, as personagens… Podemos imaginar-nos, inclusivamente, dentro da história de Jesus, vê-lo a Ele, os seus lugares, os seus movimentos, escutar as suas palavras de viva-voz. E, deste modo, o Evangelho toca-nos profundamente.
Os gestos de Jesus são inclusivos: Ele associa a si os mais pobres, os oprimidos, os cegos, tornando-os participantes da sua nova visão das coisas. Não tem um olhar assistencialista. Não cura os cegos apenas para que possam usufruir do espetáculo mediático deste mundo, mas para que sejam capazes de ver a ação de Deus na História. O Senhor não vem libertar os oprimidos apenas para os fazer sentirem-se bem, mas para os mandar agir.
Jesus tem confiança no que há de melhor no espírito humano. Encontrá-lo significa recuperar energia, força, coragem. Perante a realidade, o Mestre não se perde em queixas, não faz críticas paralisantes: ao invés, convida-nos a um compromisso apaixonado.
A vulnerabilidade das pessoas, por quem o Senhor sente compaixão, não o leva a um cálculo prudente das nossas possibilidades limitadas, como lhe sugerem os Apóstolos: ao invés, exorta-os à abundância transbordante do Evangelho, como aconteceu na multiplicação dos pães.
Uma trama divina, neste sentido, salienta claramente a diferença entre a capacidade de juízo de Jesus e a dos seus discípulos. Não tenhamos medo de constatar que Jesus é, com frequência, incompreendido até pelos seus, é difícil de aceitar, fica sozinho. O que devemos pôr em causa, pelo contrário, é a nossa capa- cidade de avaliação e de compreensão do Evangelho.
Por fim, como falar de Jesus? Que linguagem utilizar? Como apresentar esta «personagem» que mudou a história do mundo? É um dos desafios deste livro. Certamente não com a linguagem habitual. A linguagem da verdadeira tradição é viva, vital, capaz de futuro e de poesia. A linguagem habitual é, pelo contrário, obsoleta, aborrecida, cerimoniosa, óbvia. A Igreja deve ter cuidado em não cair na armadilha da linguagem banal, das frases que se repetem de maneira mecânica e cansada.
O Evangelho pode ser fonte de genialidade, de surpresa, é capaz de sacudir profundamente. O pior que pode acontecer é traduzir a força da linguagem evangélica em algodão-doce: abafar o impacto das palavras, suavizar a intensidade das frases, domesticar o sentido do discurso. Quão importantes são as palavras! Os artistas, os escritores, precisamente por causa da natureza da sua inspiração, são capazes de conservar a força da narração evangélica.
Atualmente, ressoa pelo mundo um «eco de chumbo», para usar uma expressão do poeta jesuíta Gerard Manley Hopkins. Faço um apelo: neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e de grandes polarizações, de paradigmas rígidos, de graves desafios a nível climático e económico precisamos da genialidade de uma linguagem nova, de histórias e imagens poderosas, de escritores, poetas, artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem evangélica, de nos fazer ver Jesus.