Intervenções do Papa Francisco na JMJ Lisboa 2023

Jornada Mundial da Juventude 9 agosto 2023  •  Tempo de Leitura: 62

Neste artigo apresentamos as homilias integrais e outras intervenções dos eventos do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa 2023.

 

JMJ LISBOA 2023 - discursos e homilias do Papa Francisco

 

 

 

Quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Chegada à Base Aérea de Figo Maduro, em Lisboa

 

 


RECEÇÃO OFICIAL

 

 

 


 

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO, no Centro Cultural de Belém

 

 

Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Distintos membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Ilustres Autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente o acolhimento e as amáveis palavras que me dirigiu. O Senhor Presidente sabe acolher bem. Obrigado! Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal; torna-se, de certo modo, a capital do mundo, a capital do futuro, porque os jovens são o futuro. Isto condiz bem com o seu caráter multiétnico e multicultural (penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países) e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes.

Não muito longe daqui, no Cabo da Roca, está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: «Aqui... onde a terra se acaba e o mar começa» (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20). Durante séculos, acreditou-se que lá estivessem os confins do mundo. E em certo sentido é verdade, porque este país confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: «Lisboa tem cheiro de flores e de mar» (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). Muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim» (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro). À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo. Nesta linha, gostaria também eu de partilhar convosco algumas reflexões, deixando-me levar pela imagem do oceano.

Segundo a mitologia clássica, Oceano é filho do céu (Urano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima elevando-se para o infinito. Ao mesmo tempo, porém, Oceano é filho da terra (Gea) que abraça, convidando assim a envolver de ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano não liga apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto. As grandes questões hoje, como sabemos, são globais e já muitas vezes tivemos de fazer experiência da ineficácia da nossa resposta às mesmas, precisamente porque o mundo, diante de problemas comuns, se mantém dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios.

Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Em 2007, foi assinado aqui o homónimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que «a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos» (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1); mas vai mais longe afirmando que, «nas suas relações com o resto do mundo (...), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos» (art. 1,4/2.5). Não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminho da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Aqui temos o espírito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental.

Segundo uma etimologia, que é objeto de discussão, o nome Europa derivaria duma palavra que indica a direção do ocidente. O certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o «velho continente» – poderíamos dizer o continente “ancião” –, um impulso de abertura universal, isto é, um impulso que o torne mais jovem. Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo, percursos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais distorcidas da realidade.

No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, alargando o campo: Que rota estás a seguir, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Isto é verdade. Ainda há alguns dias, dizia-me o ecónomo que o investimento que rende melhor é na fabricação de armas. Investe-se mais em armas do que no futuro de nossos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas com a sua própria cultura, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas. E isto ajudar-nos-á a pensar nos sonhos dos pais fundadores da União Europeia: eles sonhavam em grande!

Com a sua imensa vastidão de água, o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam: a cultura do descarte da vida. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde navegais? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar? Penso em tantas leis sofisticadas sobre a eutanásia!

Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, oferece-nos motivos para esperar; é cidade da esperança. Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois – como se diz por aqui – «ao lado dos jovens, não se envelhece». Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, jovens que sonham desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho, a esperança da vida. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro. Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: «Navegar é preciso; viver não é preciso (...); o que é necessário é criar» (Navegar é preciso). Trabalhemos, pois, com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção da esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.

O ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado; deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?

O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos. É preciso retomar o diálogo ente jovens e idosos. A isto mesmo faz apelo o sentimento da saudade portuguesa, que exprime nostalgia, desejo dum bem ausente, que só renasce em contacto com as próprias raízes. Os jovens devem encontrar as suas próprias raízes nos idosos. Neste sentido, é importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.

O último estaleiro de esperança é o da fraternidade, que nós, cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitas partes de Portugal, está ainda muito vivo o sentido de vizinhança e solidariedade. Contudo, no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não nos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto» (Todos os nomes, 1997). Como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de perspetiva! Também aqui servem de exemplo os jovens que nos levam, com o seu grito de paz e ânsia de vida, a derrubar as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e crenças diversas. Soube de muitos jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa «Missão País», que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos, e isto é uma “unção” para a juventude. Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes.

Irmãos e irmãs, sintamo-nos chamados, todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnífico país. Deus abençoe Portugal!


VÉSPERAS COM OS BISPOS, SACERDOTES, DIÁCONOS, CONSAGRADOS E CONSAGRADAS, SEMINARISTAS E AGENTES PASTORAIS, no Mosteiro dos Jerónimos

 

 


Prezados Irmãos Bispos,

Amados sacerdotes, diáconos, consagradas, consagrados, seminaristas,

Queridos agentes pastorais, irmãos e irmãs, boa tarde!

Estou feliz por me encontrar no meio de vós não só para viver, juntamente com muitos jovens, a Jornada Mundial da Juventude, mas também para partilhar o vosso caminho eclesial com as suas canseiras e esperanças. Agradeço a D. José Ornelas as palavras que me dirigiu; desejo rezar convosco, para – como disse – nos tornarmos, junto com os jovens, ousados em abraçar «o sonho de Deus e encontrar caminhos para uma participação alegre, generosa e transformadora a bem da Igreja e da humanidade». Não se trata duma piada; é um programa.

Mergulhei na beleza do vosso país, terra de passagem entre o passado e o futuro, local de antigas tradições e de grandes mudanças, embelezado por vales viçosos, praias douradas debruçadas sobre o imenso e fascinante oceano, que banha Portugal. Tudo isto me sugere o ambiente da vocação dos primeiros discípulos, que Jesus chamou nas margens do Mar da Galileia. Quero deter-me sobre esta chamada, que põe em evidência o que acabámos de ouvir na Lectio brevis das Vésperas: o Senhor salvou-nos, chamou-nos não em atenção às nossas obras, mas segundo a sua graça (cf. 2 Tm 1, 9). O mesmo aconteceu na vida dos primeiros discípulos, quando Jesus, ao passar, «viu dois barcos que se encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles e lavavam as redes» (Lc 5, 2). Então Jesus subiu para o barco de Simão e, depois de ter falado às multidões, mudou a vida daqueles pescadores, convidando-os a fazerem-se ao largo e lançarem as redes. Salta aos olhos o contraste: por um lado, os pescadores descem do barco para lavar as redes, ou seja, limpá-las, guardá-las e voltar para casa e, por outro, Jesus sobe para o barco e convida a lançar novamente as redes para a pesca. Sobressaem as diferenças: os discípulos descem, Jesus sobe; os primeiros querem guardar as redes, o Mestre quer que saiam de novo para o mar a fim de pescar.

Em primeiro lugar, temos os pescadores que descem do barco para lavar as redes. Esta é a cena que se apresenta aos olhos de Jesus, e Ele pára ali mesmo. Pouco antes quisera começar a sua pregação na sinagoga de Nazaré, mas os seus conterrâneos expulsaram-No da cidade e tentaram até matá-Lo (cf. Lc 4, 28-30). Então Jesus sai do lugar sagrado e começa a pregar a Palavra no meio da gente, pelas estradas onde labutam dia a dia as mulheres e os homens do seu tempo. Cristo está interessado em fazer sentir a proximidade de Deus, precisamente nos lugares e situações onde as pessoas vivem, lutam, esperam, às vezes colecionando nas suas mãos fracassos e insucessos, precisamente como aqueles pescadores que não tinham pescado nada durante a noite. Jesus olha com ternura para Simão e seus companheiros que, cansados e angustiados, lavam as suas redes, realizando um gesto repetitivo, automático, mas também cansado e resignado: não havia mais nada a fazer senão voltar para casa de mãos vazias.

Às vezes podemos sentir um cansaço semelhante no nosso caminho eclesial. Cansaço. Alguém dizia: «temo o cansaço dos bons». Cansaço sentido quando nos parece que nada mais temos nas mãos além das redes vazias. Trata-se dum sentimento bastante difundido nos países de antiga tradição cristã, atravessados por muitas mudanças sociais e culturais e cada vez mais marcados pelo secularismo, pela indiferença para com Deus, por um progressivo afastamento da prática da fé. O perigo aqui é que entre o mundanismo. Aliás isto vê-se, com frequência, acentuado pela desilusão ou a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma purificação humilde, constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar. O risco, porém, quando nos sentimos desanimados (cada um de vós pense em que momento sentiu o desânimo), o risco é descer do barco, acabando presos nas redes da resignação e do pessimismo. Ao contrário, confiemos que Jesus continua a tomar pela mão e a levantar a sua Esposa amada. Levemos ao Senhor as nossas canseiras e as nossas lágrimas, para poder enfrentar as situações pastorais e espirituais, dialogando entre nós com abertura de coração para experimentar novos caminhos a seguir. Quando estamos desanimados, mais ou menos conscientemente «aposentamo-nos», «aposentamo-nos» do zelo apostólico, perdemo-lo pouco a pouco e tornamo-nos «funcionários do sagrado». É muito triste quando uma pessoa que consagrou a sua vida a Deus se torna «funcionário», mero administrador das coisas. É muito triste.

De facto, logo que os apóstolos descem para lavar as ferramentas usadas, Jesus sobe para o barco e depois convida a lançar de novo as redes. No momento do desânimo, momento da «aposentação», deixemos Jesus subir novamente para o barco, com o entusiasmo da primeira vez, aquele entusiasmo que deve ser revivido, reconquistado, reeditado. Ele vem procurar-nos nas nossas solidões, nas nossas crises, para nos ajudar a recomeçar. A espiritualidade do recomeço. Não tenhais medo. A vida é assim: cair e recomeçar, aborrecer-se e recobrar a alegria. Aceitar esta mão que nos dá Jesus. Hoje continua a passar pelas margens da existência para despertar a esperança e dizer, também a nós, como a Simão e aos outros: «Faz-te ao largo; e vós lançai as redes para a pesca» (Lc 5, 4). E quando se perde o entusiasmo, assaltam-nos mil justificações para não lançarmos as redes, mas sobretudo apodera-se de nós uma resignação amarga, que é como um verme que corrói a alma. Irmãos e irmãs, vivemos certamente um tempo difícil – bem o sabemos! –, mas a interpelação que o Senhor dirige hoje à Igreja é esta: «Queres descer do barco e afundar na desilusão, ou fazer-Me subir permitindo que seja mais uma vez a novidade da minha Palavra a tomar na mão o leme? Digo a ti sacerdote, consagrado, consagrada, bispo: Queres apenas conservar o passado que ficou para trás ou lançar de novo e com entusiasmo as redes para a pesca?». Eis o que nos pede o Senhor: despertar a ânsia pelo Evangelho.

Quando alguém se acostuma, se sente aborrecido e a missão torna-se uma espécie de «emprego», é hora de dar lugar a esta segunda chamada de Jesus, que sempre nos chama de novo. Chama-nos para nos fazer caminhar, chama-nos para nos refazer. Não tenhais medo desta segunda chamada de Jesus. Não se trata duma ilusão, mas é Ele mesmo que volta a bater à porta. E podemos dizer que esta é a ânsia «boa» quando nos deixamos seduzir pela segunda chamada de Jesus. É a ânsia «boa» que vos comunica, a vós portugueses, a imensidão do oceano: fazer-se ao largo, não para conquistar o mundo, nem para ir à pesca do bacalhau, mas para alegrar o mundo com a consolação e a alegria do Evangelho. Sob este ponto de vista, podemos ler as palavras dum vosso grande missionário, o Padre António Vieira, chamado «Paiaçu – pai grande». Segundo ele, para nascer, Deus ter-vos-ia dado uma pequena terra, mas, ao fazer-vos debruçar sobre o oceano, deu-vos o mundo inteiro para morrer: «Para nascer, pequena terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo» (A. Vieira, “Sermão de Santo António”, Roma 1670, § IV, in: Homilias, vol. III, tomo VII, Porto 1959, p. 69). Somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho. Não é momento de parar, não é momento de desistir, não é momento de atracar o barco à margem nem de olhar para trás; não temos que escapar deste tempo, só porque nos mete medo, para nos refugiarmos em formas e estilos do passado. Não! Este é o tempo da graça que o Senhor nos concede para nos aventurarmos no mar da evangelização e da missão.

Mas, para o conseguir, precisamos também de fazer opções. Quero indicar três opões, inspiradas no Evangelho.

A primeira opção: fazer-se ao largo. Cultivai a magnanimidade. Não sejais pusilânimes! Fazei-vos ao largo, para lançar novamente as redes ao mar, é preciso sair da margem das desilusões e do imobilismo, afastar-se daquela tristeza melosa e daquele cinismo irónico que muitas vezes nos assaltam à vista das dificuldades. Tristeza melosa, cinismo irónico: examinemos a consciência sobre isto. Recuperar o entusiasmo, mas numa segunda edição desse entusiasmo, o entusiasmo já maduro, o entusiasmo que se segue ao fracasso ou ao tédio. Não é fácil recuperar o entusiasmo adulto. Temos de o fazer para passar do derrotismo à fé, como Simão que, apesar de ter trabalhado em vão toda a noite, conclui: «Porque Tu o dizes, lançarei as redes» (Lc 5, 5). Mas, para nos fiarmos dia a dia no Senhor e na sua Palavra, não bastam palavras, é necessária muita oração. Gostaria de fazer aqui uma pergunta, mas cada qual responde no seu íntimo: Como rezo eu? Como um papagaio, blá, blá, blá, ou adormentando-me diante do Sacrário, porque não sei como falar com o Senhor? Rezo? Como rezo? Apenas na adoração, só diante do Senhor, é que recuperamos o gosto e a paixão pela evangelização. E, curiosamente, perdemos a oração de adoração; e todos, sacerdotes, bispos, consagradas, consagrados têm que a recuperar: recuperar aquele permanecer em silêncio diante do Senhor. A Madre Teresa, envolvida em tantas coisas da vida, nunca deixou a adoração, mesmo nos momentos em que a sua fé vacilava questionando-se se tudo aquilo era verdade ou não. Momento de escuridão, que também teve Teresinha de Jesus. Então, na oração, vencemos a tentação de continuar com uma «pastoral nostálgica feita de lamentações». Num convento havia uma freira (isto aconteceu!) que se lamentava de tudo, e não sei qual era o nome dela, mas as irmãs mudaram-lhe o nome chamando-a a «Irmã Lamúrias». Quantas vezes transformamos em lamúrias as nossas impotências, as nossas desilusões! E, deixando estas lamúrias, ganhemos de novo forças para nos fazermos ao largo, sem ideologias nem mundanismos. Aquele mundanismo espiritual que se insinua em nós e do qual nasce o clericalismo. Clericalismo não só dos padres: os leigos clericalizados são piores do que os padres. Esse clericalismo que nos arruína. E, como dizia um grande mestre espiritual, esse mundanismo espiritual — provocado pelo clericalismo — é um dos males mais graves que podem acontecer à Igreja. Procuremos superar estas dificuldades sem ideologias nem mundanismos, animados por um único desejo: que chegue a todos o Evangelho. Neste caminho, não vos faltam exemplos! E, dado que nos encontramos no meio dos jovens, apraz-me recordar um jovem lisboeta, São João de Brito: era um jovem daqui que há séculos, no meio de muitas dificuldades, foi para a Índia e lá não desdenhava falar e vestir-se à maneira das pessoas locais contanto que lhes pudesse anunciar Jesus. Também nós somos chamados a mergulhar as nossas redes no tempo em que vivemos, a dialogar com todos, a tornar compreensível o Evangelho, mesmo que para isso tenhamos de correr o risco dalguma tempestade. Como os jovens que aqui vêm de todo o mundo para desafiar as ondas gigantes, façamo-nos ao largo também nós sem medo. Sim! Não temamos enfrentar o mar alto, porque no meio da tempestade e dos ventos contrários, Jesus vem ao nosso encontro e diz: «Coragem, sou Eu, não temais!» (Mt 14, 27). Quantas vezes já tivemos esta experiência? Cada qual se interpele dentro de si mesmo. E se não a tivemos é porque algo falhou durante a tempestade.

Como segunda opção, levar juntos por diante a pastoral, todos juntos. No texto, Jesus confia a Pedro a tarefa de fazer-se ao largo, mas depois fala no plural, dizendo «e vós lançai as redes» (Lc 5, 4): Pedro guia o barco, mas todos estão no barco e todos são chamados a fazer descer as redes. Todos. E, quando apanham uma grande quantidade de peixes, não pensam que conseguiriam arranjar-se sozinhos, nem gerem a dádiva como posse e propriedade privada, mas «fizeram sinal – diz o Evangelho – aos companheiros que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar» (Lc 5, 7). E assim encheram de peixe, não um, mas dois barcos: um significa solidão, fechamento, pretensão de autossuficiência; dois significa relação. A Igreja é sinodal, é comunhão, ajuda mútua, caminho comum. E a isto tende o Sínodo em curso, que terá o seu primeiro período de assembleia geral no próximo mês de outubro. Na barca da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são chamados a subir para ela e lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio do Evangelho. E não vos esqueçais desta palavra: todos, todos, todos. Quando tenho de falar sobre o modo como abrir perspetivas apostólicas, toca-me muito aquela passagem do Evangelho em que os convidados se recusam a ir à festa de núpcias do filho quando já está tudo preparado. Que diz então o senhor, o senhor que preparou a festa? «Saiam pelas periferias e tragam todos, todos, todos, todos: sãos, doentes, crianças e adultos, bons e pecadores. Todos». Que a Igreja não seja uma alfândega para selecionar quem entra e quem não entra. Todos, cada um com a sua vida às costas, com os seus pecados, assim como é diante de Deus, como é diante da vida... Todos. Todos. Não levantemos alfândegas na Igreja. Todos. E é um grande desafio, especialmente em contextos onde os sacerdotes e os consagrados estão cansados porque, enquanto as necessidades pastorais vão aumentando sempre mais, eles são cada vez menos. Mas podemos olhar para esta situação como uma ocasião para, com fraterno entusiasmo e sã criatividade pastoral, envolver os leigos. Assim as redes dos primeiros discípulos tornam-se uma imagem da Igreja, que é uma «rede de relações» humanas, espirituais e pastorais. Se não houver diálogo, se não houver corresponsabilidade, se não houver participação, a Igreja envelhece. Permiti que o exprima assim: nunca um Bispo sem o próprio presbitério e o Povo de Deus; nunca um padre sem os seus irmãos sacerdotes; e todos juntos – sacerdotes, religiosas, religiosos e fiéis leigos – como Igreja, nunca sem os outros, nunca sem o mundo (sem mundanismo – isso sim! –, mas não sem o mundo). Na Igreja, ajudamo-nos, apoiamo-nos reciprocamente e somos chamados a difundir, também fora dela, um clima de fraternidade construtiva. Aliás, como escreve São Pedro, nós somos as pedras vivas usadas para a construção dum edifício espiritual (cf. 1 Ped 2, 5). E poderia acrescentar numa linguagem que vos é familiar: vós, fiéis portugueses, formais uma «calçada», sois os ladrilhos preciosos que compõem um tal pavimento acolhedor e brilhante que o Evangelho há de pisar; e não pode faltar uma pedrinha sequer, senão imediatamente se dá conta. Tal é a Igreja que, com a ajuda de Deus, somos chamados a construir!

Enfim a terceira opção: tornar-se pescadores de homens. Não tenhais medo. Isto não é fazer proselitismo, é anunciar o Evangelho que nos desafia. Nesta imagem tão bela de Jesus – ser pescadores de homens –, Jesus confia aos discípulos a missão de se fazerem ao largo no mar do mundo. Muitas vezes, na Sagrada Escritura, o mar simboliza o lugar do mal e das forças adversas que os homens não conseguem dominar. Por isso pescar as pessoas e tirá-las para fora da água significa ajudá-las a voltar a subir de onde afundaram, salvá-las do mal que ameaça afogá-las, ressuscitá-las de todas as formas de morte. Isto, porém, sem proselitismo, mas com amor. E um dos sinais de alguns movimentos eclesiais que vão por caminho errado é o proselitismo. Quando um movimento eclesial ou uma diocese, ou um bispo, ou um pároco, ou uma freira, ou um leigo faz proselitismo, isso não é cristão; cristão é convidar, acolher, ajudar, mas sem proselitismo. Com efeito, o Evangelho é um anúncio de vida no mar da morte, de liberdade nas voragens da escravidão, de luz no abismo das trevas. Como afirma Santo Ambrósio, «os instrumentos da pesca apostólica são como as redes: de facto, as redes não fazem morrer quem fica preso nelas, mas conserva-o em vida, arrasta-o dos abismos para a luz» (Exp. Luc. IV, 68-79). Não faltam trevas na sociedade atual, inclusive aqui em Portugal... por toda a parte! Fica-se com a sensação de que tenha diminuído o entusiasmo, a coragem de sonhar, a força para enfrentar os desafios, a confiança no futuro; entretanto, vamos navegando nas incertezas, na precariedade sobretudo económica, na pobreza de amizade social, na falta de esperança. A nós, como Igreja, cabe a tarefa de nos fazermos ao largo nas águas deste mar, lançando a rede do Evangelho, sem apontar, sem acusar ninguém, mas levando às pessoas do nosso tempo uma proposta de vida, a de Jesus: levar o acolhimento do Evangelho, convidar para a festa uma sociedade multicultural; levar a proximidade do Pai às situações de precariedade, de pobreza, que crescem sobretudo entre os jovens; levar o amor de Cristo onde é frágil a família e se encontram feridas as relações; transmitir a alegria do Espírito onde reinam o desânimo e o fatalismo. Assim se exprime um escritor vosso: «Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido» (F. Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa 1998, 247). Queremos sonhar a Igreja Portuguesa como um «porto seguro» para quem enfrenta as travessias, os naufrágios e as tempestades da vida.

Queridos irmãos e irmãs, digo a todos, leigos, religiosos, religiosas, sacerdotes, bispos, a todos, a todos: não tenhais medo, lançai as redes. Não vivais acusando «isto é pecado, isso aí não é pecado». Vinde todos… depois falamos. Mas, primeiro, sintam o convite de Jesus, depois virá o arrependimento e enfim a proximidade de Jesus. Por favor, não transformem a Igreja numa alfândega: aqui entram os justos, os que estão em ordem, os que estão bem casados… todos os outros lá fora. Não. A Igreja não é isto. Justos e pecadores, bons e maus, todos, todos, todos. Será depois o Senhor a ajudar-nos a resolver este assunto. Mas todos. De coração vos agradeço, irmãos e irmãs, a atenção prestada, apesar de aqui ou ali vos ter aborrecido; agradeço-vos tudo o que fazeis, o exemplo, sobretudo o exemplo sem alarde, e a constância: esse levantar-se todos os dias para começar de novo ou para continuar o que se começou. Como costumais dizer: Muito obrigado… pelo que fazeis! E confio-vos a Nossa Senhora de Fátima, à guarda do Anjo de Portugal e à proteção dos vossos grandes Santos e, aqui em Lisboa, de modo especial a Santo António (vo-lo roubam os de Pádua), apóstolo incansável, pregador inspirado, discípulo do Evangelho atento aos males da sociedade e cheio de compaixão pelos pobres. Que Santo António interceda por vós e vos dê a alegria duma nova pesca milagrosa. Depois contais-me, sim? E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!


Quinta-feira, 3 de agosto de 2023

ENCONTRO COM OS JOVENS UNIVERSITÁRIOS, na Universidade Católica Portuguesa

 

 

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Obrigado, senhora Reitora, pelas suas palavras. Obrigado! Afirmou que todos nos sentimos «peregrinos», palavra esta cujo significado merece ser meditado. Literalmente, quer dizer deixar de lado a rotina habitual e pôr-se a caminho com um intento, que pode ser o de um passeio pelos campos ou ir mais além dos nossos confins habituais; seja como for, deixando o espaço de conforto pessoal rumo a um horizonte de sentido. Na imagem do «peregrino», espelha-se a conduta humana, pois todos somos chamados a confrontar-nos com grandes interrogativos que não têm resposta, não têm uma resposta simplista ou imediata, mas convidam a realizar uma viagem, superando-se a si mesmo, indo mais além. Trata-se dum processo que um universitário compreende bem, pois é assim que nasce a ciência. E de igual modo cresce também a busca espiritual. Peregrino é caminhar para uma meta ou à procura duma meta. Há sempre o perigo de mover-se num labirinto, onde não há meta, nem saída. Desconfiemos das fórmulas pré-fabricadas (são labirínticas), desconfiemos das respostas que nos parecem ao alcance da mão, das respostas extraídas da manga como se fossem cartas viciadas de jogar; desconfiemos das propostas que parecem dar tudo sem pedir nada. Desconfiemos. A difidência é uma arma para poder caminhar para diante e não continuar às voltas. Vemos numa parábola de Jesus que só encontra a pérola de grande valor quem a procura com sabedoria e com espírito de iniciativa, quem dá tudo e arrisca tudo o que tem para a possuir (cf. Mt 13, 45-46). Procurar e arriscar: estes são os dois verbos do peregrino. Procurar e arriscar.

Fernando Pessoa diz, de modo atormentado mas correto, que «ser descontente é ser homem» (Mensagem, O Quinto Império). Não devemos ter medo de nos sentir inquietos, de pensar que tudo o que possamos fazer não basta. Neste sentido e dentro duma justa medida, estar insatisfeito é um bom antídoto contra a presunção de autossuficiência e contra o narcisismo. O caráter incompleto define a nossa condição de indagadores e peregrinos; como diz Jesus, estamos no mundo, mas não somos do mundo (cf. Jo 17, 16). Estamos caminhando «para». Somos chamados a algo mais, a uma decolagem sem a qual não há voo. Portanto, não nos alarmemos se nos encontramos intimamente sedentos, inquietos, incompletos, desejosos de sentido e de futuro, com saudade do futuro. E aqui, junto com a saudade do futuro, não vos esqueçais de manter viva a memória do futuro. Não estamos doentes, estamos vivos! Preocupemo-nos antes quando estamos prontos a substituir a estrada a fazer por uma paragem em qualquer estação de serviço que nos dê a ilusão do conforto; quando substituímos os rostos pelos ecrãs, o real pelo virtual; quando, em vez das perguntas lacerantes, preferimos as respostas fáceis que anestesiam. E podemos encontrá-las em qualquer manual de relações sociais, de bom comportamento. As respostas fáceis anestesiam.

Amigos, permiti que vos diga: procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é precisa coragem para pensar assim. Por isso sede protagonistas duma «nova coreografia» que coloque no centro a pessoa humana, sede coreógrafos da dança da vida. As palavras da senhora Reitora serviram-me de inspiração sobretudo quando afirmou que «a universidade não existe para se preservar como instituição, mas para responder com coragem aos desafios do presente e do futuro». A auto-preservação é uma tentação, é um reflexo condicionado pelo medo, que nos faz olhar para a existência de forma distorcida. Se as sementes se preservassem a si mesmas, desperdiçariam completamente a sua força geradora e condenar-nos-iam à fome; se os invernos se preservassem a si mesmos, não existiria a maravilha da primavera. Por isso, tende a coragem de substituir os medos pelos sonhos: substituí os medos pelos sonhos, não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!

À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos. Se o conhecimento não for acolhido como uma responsabilidade, torna-se estéril. Se quem recebeu um ensino superior – que hoje, em Portugal e no mundo, continua a ser um privilégio –, não se esforça por restituir aquilo de que beneficiou, significa que não compreendeu profundamente o que lhe foi oferecido. Gosto de pensar que, no Génesis, as primeiras perguntas que Deus faz ao homem são: «Onde estás?» (3, 9) e «Onde está o teu irmão?» (4, 9). Far-nos-á bem perguntar-nos: Onde estou? Permaneço fechado no meu mundo ou abraço o risco de sair das minhas seguranças para me tornar um cristão praticante, um artesão de justiça, um artesão da beleza? E perguntemo-nos ainda: Onde está o meu irmão? Experiências de serviço fraterno como a «Missão País» e muitas outras, que nascem no meio académico, deveriam ser consideradas indispensáveis para quem passa por uma universidade. Com efeito, o título de estudo não deve ser visto apenas como uma licença para construir o bem-estar pessoal, mas como um mandato para se dedicar a uma sociedade mais justa, uma sociedade mais inclusiva, ou seja, mais desenvolvida. Disseram-me que a vossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, em entrevista que é uma espécie de testamento, à pergunta «o que gostaria de ver realizado em Portugal neste novo século?», respondeu sem hesitar: «Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das diferenças entre ricos e pobres» (“Entrevista feita por Joaci Oliveira”, Cidade Nova, nº 3/2001). Dirijo agora a mesma pergunta a vós, caros estudantes, peregrinos do saber: Que quereis ver realizado em Portugal e no mundo? Quais mudanças, qual transformação? E como pode a universidade, especialmente a Católica, contribuir para isso?

Beatriz, Mahoor, Mariana, Tomás, agradeço os vossos testemunhos. Em todos havia um tom de esperança, uma carga de entusiasmo realista, sem queixumes nem escapadelas idealistas. Quereis ser protagonistas, «protagonistas da mudança», como disse a Mariana. Ao escutar-vos veio-me ao pensamento uma frase do escritor Almada Negreiros, que talvez vos seja familiar: «Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres» (A Invenção do Dia Claro). Também este idoso que vos fala (é que já estou velho), este idoso sonha que a vossa geração se torne uma geração de mestres: mestres de humanidade, mestres de compaixão, mestres de novas oportunidades para o planeta e seus habitantes, mestres de esperança. E mestres que defendam a vida do planeta, ameaçada neste momento por uma grave destruição ecológica.

Como alguns de vós sublinharam, devemos reconhecer a urgência dramática de cuidar da casa comum. No entanto, isso não pode ser feito sem uma conversão do coração e uma mudança da visão antropológica subjacente à economia e à política. Não podemos contentar-nos com simples medidas paliativas ou com tímidos e ambíguos compromissos. Neste caso, «os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso» (Francisco, Carta enc. Laudato si’, 194). Não vos esqueçais disto: os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se, pelo contrário, de tomar a peito o que infelizmente continua a ser adiado, ou seja, a necessidade de redefinir o que chamamos progresso e evolução. É que, em nome do progresso, já se abriu caminho a um grande retrocesso. Pensai bem nisto que vos digo: em nome do progresso, já se abriu caminho a um grande retrocesso. Vós sois a geração que pode vencer este desafio: tendes instrumentos científicos e tecnológicos mais avançados, mas, por favor, não vos deixeis cair na cilada de visões parciais. Não esqueçais que temos necessidade duma ecologia integral, de escutar o sofrimento do planeta juntamente com o dos pobres; necessidade de colocar o drama da desertificação em paralelo com o dos refugiados; o tema das migrações juntamente com o da queda da natalidade; necessidade de nos ocuparmos da dimensão material da vida no âmbito duma dimensão espiritual. Não queremos polarizações, mas visões de conjunto.

Obrigado, Tomás, por nos teres dito que «não é possível uma verdadeira ecologia integral sem Deus, que não pode haver futuro num mundo sem Deus». Também eu gostaria de vos dizer: tornai credível a fé através das decisões. Porque se a fé não gera estilos de vida convincentes, não faz levedar a massa do mundo. Não basta que um cristão esteja convencido, deve ser convincente; as nossas ações são chamadas a refletir a beleza jubilosa e simultaneamente radical do Evangelho. Além disso, o cristianismo não pode ser habitado como uma fortaleza cercada de muros, que ergue baluartes contra o mundo. Por isso, achei tocante o testemunho de Beatriz, quando disse que é precisamente «a partir do campo da cultura» que se sente chamada a viver as Bem-aventuranças. Em cada época, uma das tarefas mais importantes para os cristãos é a de recuperar o sentido da encarnação. Sem a encarnação, o cristianismo torna-se uma ideologia e a tentação das «ideologias» cristãs (entre aspas), é muito atual; é a encarnação que permite maravilhar-se com a beleza que Cristo revela através de cada irmão e irmã, cada homem e mulher.

A propósito, é interessante que, na vossa nova cátedra dedicada à «Economia de Francisco», tenhais acrescentado a figura de Clara. De facto, é indispensável o contributo feminino. No inconsciente coletivo, quantas vezes se pensa que as mulheres são de segunda categoria, são reservas, não jogam como titulares. Isto existe no inconsciente coletivo. Mas a contribuição feminina é indispensável. Aliás vê-se, na Bíblia, como a economia familiar está em grande parte na mão da mulher. É ela a verdadeira «governante» da casa, com uma sabedoria que não visa exclusivamente o lucro, mas o cuidado, a convivência, o bem-estar físico e espiritual de todos, bem como a partilha com os pobres e os estrangeiros. E abordar os estudos económicos com esta perspetiva é entusiasmante, tendo em vista devolver à economia a dignidade que lhe compete, para que não caia como presa do mercado selvagem e da especulação.

A iniciativa do Pacto Educativo Global e os sete princípios da sua arquitetura incluem muitos desses temas, desde o cuidado da casa comum à plena participação das mulheres, à necessidade de encontrar novas formas de entender a economia, a política, o crescimento e o progresso. Convido-vos a estudar o Pacto Educativo Global, a apaixonar-vos por ele. Um dos pontos que trata é a educação para o acolhimento e a inclusão. E não podemos fingir que não ouvimos as palavras de Jesus no capítulo 25 de Mateus: «era estrangeiro e recolhestes-me» (25, 35). Acompanhei emocionado o testemunho de Mahoor, quando lembrou o que significa viver com o «sentimento constante de ausência de um lar, da família, dos amigos, (...) de ter ficado sem teto, sem universidade, sem dinheiro, (...) cansada, exausta e abatida pela dor e pelas perdas». Disse-nos que reencontrou a esperança porque alguém acreditou no impacto transformador da cultura do encontro. Sempre que alguém pratica um gesto de hospitalidade, desencadeia uma transformação.

Amigos, estou muito contente por vos ver como uma comunidade educativa viva, aberta à realidade e consciente de que o Evangelho não se limita a servir de ornamento, mas anima as partes e o todo. Sei que o vosso percurso engloba diversos âmbitos: estudo, amizade, serviço social, responsabilidade civil e política, cuidado da casa comum, expressões artísticas... Ser uma universidade católica significa, antes de mais nada, que cada elemento está em relação com o todo e o todo revê-se nas partes. Assim, ao mesmo tempo que se adquirem competências científicas, vai-se amadurecendo como pessoa, no conhecimento de si mesmo e no discernimento do próprio caminho. Caminho, sim; labirinto, não. Então avante! Uma tradição medieval conta que quando os peregrinos se cruzavam no Caminho de Santiago, um saudava o outro exclamando «Ultreia» ao que este respondia «et Suseia». Trata-se de expressões de encorajamento para prosseguir a busca e o risco da caminhada, dizendo-se mutuamente: «Vai mais longe e mais alto!» «Coragem, força, anda para diante!» E isto é o que também eu vos desejo, de todo o meu coração, a todos vós. Obrigado!


ENCONTRO COM OS JOVENS DE SCHOLAS OCCURRENTES, na sede de Scholas Occurentes de Cascais

 

 

Pregunta 1 (em português)

Bom dia! Scholas! Scholas! Scholas!

Quando me foi apresentado, não tive dúvidas em aceitar e abraçar porque é um espaço onde todos partilham as suas emoções e sentimentos. É um espaço onde cada um contribui com aquilo que tem, de valores éticos e morais para o bem estar da comunidade. Independentemente da sua religião ou origem. Sou guineense, da Guiné Bissau, e sou muçulmano. Mas sinto, sinto-me neste espaço. E, como sendo muçulmano, sinto obrigação e dever de me juntar e fazer parte deste movimento. Porque o que o islão também apela é a boa convivência entre as crenças, entre as diferentes crenças. E apela e zela pelo bem estar da comunidade. Apela para aquilo que devemos fazer, pelo cuidado que devemos ter com o próximo. E, por essa razão, gostaria de perguntar, o por que do Scholas ser um espaço onde todos se identificam e o por que de tanta diversidade para ter uma obra de arte? Obrigado.

Resposta do PAPA (em espanhol)

Scholas possibilita isto, que todos se sintam interpretados pelo grande respeito, mas é um respeito que não é estático, mas dinâmico, que põe as coisas em movimento para fazer coisas, para se exprimir fazendo coisas, como este quadro que, como me disse Del Corral, é uma "Capela Sistina" pintada por vocês.

(Aplausos)

Scholas faz-nos avançar, faz-nos respeitar os outros e ouvir os outros que têm algo a dizer-nos e que nos ouvem porque temos algo a dizer-lhes. Scholas mostra-te o caminho em frente e, se estiveres parado, levanta-te e faz-te avançar. Scholas é um encontro, caminhando. Toda a gente, seja qual for o seu país, seja qual for a sua religião, olhar para a frente apenas caminhar juntos. E isso é construtivo, como os três quilómetros e meio de parede que fizeram para chegar aqui.

(Aplausos)

Pregunta 2 (em português)

Eu queria seguir um pouco na direção da diversidade pra entrar no tema que foi a base dos nossos dois meses de trabalho que é o caos. Nós, enquanto grupo, e eu também individualmente, tivemos a oportunidade de visitar várias comunidades diferentes, várias pessoas diferentes, que são de religiões diferentes, são de culturas diferentes, e isso nos deu uma oportunidade grandiosa de aprofundar cada vez mais, não só dentro da própria pessoa, mas também de toda a comunidade que é descobrir o sentimento verdadeiro que elas tinham; as verdadeiras dores que elas sentiam; e, com isso, dar a oportunidade a elas de representarem tudo isso com uma pincelada, com uma linha no mural. Dar a oportunidade de se expressarem! E isso, querendo ou não, afeta a nós, toca o nosso coração, pra pensarmos: será que temos esse sentimento? Será que essas dores fazem parte de nós, do nosso convívio? Então, eu queria perguntar: o que seria da nossa existência sem o caos original? Obrigado.

Resposta do PAPA (em espanhol)

Vocês dizem "caos". Muito bem, é a crise... Sabes de onde vem a palavra? Quando o trigo era colhido, passava por uma peneira, era "crivado". Crise – crivar. E a crise, nas pessoas, é isso mesmo: situações da vida, acontecimentos, os teus problemas orgânicos, ou mau humor, ou bom humor. Faz-nos crivar e temos de escolher. Uma vida sem crise é uma vida asséptica. Gostas de beber água? Gostas? Se eu te der água destilada, vais dizer: "É nojenta". Uma vida sem crise é como a água destilada, n&atild

O portal iMissio é um projeto de evangelização iniciado em 2012, que tem tido como objetivo dar voz a uma comunidade convicta de que a internet pode ser um ambiente de evangelização que desafie o modo de pensar a fé. Tem pretendido ser espaço de relação entre a fé, a vida da Igreja e as transformações vividas atualmente pelo Homem.

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail