A menina que não gostava do natal

A Francisca não gostava do Natal. Nunca conhecera o pai e vivia com a mãe numa casinha modesta no fundo da aldeia. Quando se aproximava o tempo frio, lembrava-se que em breve chegaria aquela época que lhe provocava habitualmente melancolia e desencanto.
 
Sentia-se triste por não sentir o mesmo entusiasmo e ansiedade que experimentavam as outras crianças naquela ocasião mágica quando decoravam a árvore de Natal e faziam o presépio. As luzinhas coloridas que piscavam nas ruas da aldeia e as canções natalícias que se ouviam na rádio e na televisão só lhe aumentavam a angústia.
 
Como a mãe era pobre, a Francisca não costumava receber mais do que um presente pequenino e ficava sempre desconsolada ao aperceber-se que as outras crianças adoravam reunir-se com a família na noite de consoada e esperavam entusiasticamente pela chegada do Pai Natal, enquanto saboreavam a doçaria típica da quadra e entoavam as tradicionais melodias natalícias.
 
A Francisca detestava o Natal porque pairavam no ar muitas palavras que lhe pareciam algo forçadas, ocas e falsas. Não gostava de dar-se conta que muitas pessoas como que se transformassem e quisessem ser atores de uma peça de teatro em que era obrigatório assumir papéis onde a máscara do amor, reconciliação e solidariedade era uma exigência e fosse necessário representar sentimentos de ternura e misericórdia. Achava tudo uma enorme e injustificável hipocrisia.
 
Por outro lado, sabia perfeitamente que no Natal se celebrava o nascimento do Menino Jesus e o que via era quase toda a gente a festejar tudo e mais alguma coisa menos a razão de ser da data e isso irritava-a solenemente.
 
Chegado o dia da véspera de Natal, a Francisca levantou-se como se de outro dia qualquer se tratasse e, espreguiçando-se, foi espreitar por entre as vidraças da janela. Ficou surpreendida com o manto de neve que vestia as ruas, as casas e as montanhas que abraçavam a aldeia. Suspirou e disse para os seus botões que aquilo até parecia saído de um daqueles filmes piegas que passavam na televisão nas tardes do dia de Natal.
 
Como estava muito frio, acendeu a lareira, tomou o pequeno-almoço e retirou da estante um livro empoeirado, enquanto se dava conta que, enquanto estava ali confortável e quentinha, a mãe trabalhava arduamente para pôr o pão na mesa mesmo em vésperas de Natal e ficou desolada.
 
Sentiu que não podia continuar com os braços cruzados ou com as mãos nos bolsos, lamentando-se constantemente e decidiu fazer alguma coisa para que aquele Natal fosse diferente. Lembrara-se que tinha algum dinheiro que recebera no seu aniversário e podia utilizá-lo para preparar uma surpresa à mãe.
 
Bem agasalhada, saiu de casa e, após umas brincadeiras com a neve, entrou numa loja bem perto da praça central da aldeia. Era daquele tipo de estabelecimento comercial que vendia de tudo e mais alguma coisa e onde toda a gente encontrava o que precisava e o que não precisava. Depois de vasculhar por todo o lado, decidiu comprar um pequeno pinheiro num vaso, um pedaço de barro, dois quilos de farinha e uma dúzia de ovos.
 
Chegada a casa, colocou o pinheiro junto à lareira e revestiu o vaso com um papel colorido. Depois, foi buscar o álbum de fotos e colocou várias fotografias suas, da mãe e de outros familiares e amigos presos por pequenas molas de madeira nos ramos da pequena árvore, numa decoração bem colorida e original.
 
De seguida, pegou no barro que comprara e moldou minuciosamente um S.José, uma Nossa Senhora e um Menino Jesus. Depois de pintadas as três figuras do presépio, colocou-as por cima da lareira e ainda arranjou umas palhinhas para a manjedoura que também fizera com barro e algum musgo para embelezar o espaço envolvente.
 
Durante a tarde, foi para a cozinha e, recorrendo a alguns livros de culinária, fez rabanadas, sonhos, filhoses e um bolo-rei. Era a primeira vez que se atrevia a cozinhar mas a julgar pelo odor agradável, estava convencida que a doçaria natalícia estava deliciosa.
 
Quando o sol já se escondia entre as montanhas e a Francisca preparava o clássico prato da ceia de Natal constituído por batatas cozidas, couves e bacalhau, alguém bateu à porta. Era um velhote que pedia esmola. A menina ainda tinha uns trocos que haviam sobrado das compras da manhã e, quando se preparava para lhos dar, a mãe chegou.
 
Ainda do lado de fora da porta, olhou para a Francisca e perguntou-lhe porque não convidava o velhinho a entrar e a cear com eles. Ela adorou a ideia e, quase sem dizer nada, puxou o inesperado hóspede para dentro de casa. O velhinho era um sem-abrigo que não contava passar com alguém aquela noite tão singular e, deixando-se arrastar, lá entrou com uma lágrima no canto do olho. 
 
Enquanto os três se deliciavam com os petiscos natalícios da Francisca, o simpático idoso começou a falar sobre o Natal e disse vagarosamente:
 
- Sabem, a palavra Natal significa nascimento e esta festa tão importante celebra o nascimento de Jesus, o Filho de Deus, que assumiu a condição humana para salvar toda a humanidade. Não se sabe exatamente o dia do nascimento de Jesus mas, como os romanos celebravam no dia 25 de dezembro o deus Sol por ocasião do solstício do inverno, os cristãos passaram a celebrar nesse dia a Luz que veio iluminar as trevas do mundo e oferecer uma vida nova à humanidade. Jesus foi tão importante para o mundo que o seu nascimento passou a considerar-se um marco cronológico da máxima importância… Foi o ano 0 e a história dividiu-se em duas partes: antes de Cristo ou depois de Cristo.
 
O velhinho recordou aquela noite longínqua e fria em que, na cidade de Belém, José e Maria viram nascer o Menino num humilde estábulo por não haver outro lugar melhor na cidade. Depois, falou dos animais, dos anjos e relatou a visita dos pastores e dos reis magos e dos presentes que generosamente ofereceram. Referiu que a época do Natal era tão importante que era preparada no tempo do Advento e continuava com a comemoração dos Reis e com o cantar das Janeiras.
 
Depois, debruçou-se sobre as tradições do Natal, como os presentes, os cartões de boas festas, as iluminações, os cânticos natalícios, as velas, os sinos, a árvore de Natal, a Ceia de Natal, a Missa do Galo e a gastronomia característica da quadra.
 
A Francisca e a mãe escutaram tudo com tanto interesse que ficaram sem palavras diante da sabedoria do velhote e mais surpreendidas ficaram, quando o viram tirar uma harmónica do bolso e começar a tocar algumas músicas de Natal.
 
Quando se preparavam para ir à Missa do Galo, a Francisca ouviu um ruído estranho. Correndo para a rua, viu uma senhora sentada à soleira da porta que chorava, enquanto tiritava de frio. Não se percebia bem o que dizia e pelo tipo de roupa de usava, parecia ser estrangeira. Mas os gemidos que fazia e a barriga enorme que apresentava não enganavam. Chegara a hora o parto.
 
Rapidamente desistiram de ir à missa e cuidadosamente prepararam tudo para que a senhora pudesse ter o seu bebé. Com a ajuda preciosa do velhinho, da Francisca e da sua mãe, a senhora não demorou muito a dar à luz um lindo menino.
 
Quando a mãe do menino recém-nascido descansava finalmente e a Francisca embalava suavemente o bebé nos braços, a mãe da menina dera-se conta que o velhinho desaparecera. Procurou-o por todo o lado e não o encontrou. Então, quando se sentou apreensiva junto à lareira, deu-se conta de uma caixinha que estava junto ao presépio.
 
Pegou nela e, depois de ajudar a filha a deitar o bebé junto da mãe, mostrou-a à Francisca. Ela abriu-a curiosa e viu lá dentro uma harmónica novinha em folha e um pequeno papel que dizia: ‘Francisca é para ti! Canta e toca a vida com alegria para que seja sempre Natal. Será Natal sempre que te deres a ti mesma e não desistires de amar. Assim serás feliz. Nicolau’.
 
A Francisca e a sua mãe entreolharam-se perplexas e disseram ao mesmo tempo:
 
- Afinal ele era o Pai Natal… Como é que não nos demos conta?
 
E na manhã do dia de Natal, quando a mãe do bebé o amamentava, a Francisca disse-lhe por entre gestos:
 
- Gostava muito de ser a madrinha do seu filho.
 
A mãe do bebé sorriu, disse que sim com a cabeça e sussurrou o nome que ia ao filho:
 
- Jesus.
 

 

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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