Conto: As mãos do sem-abrigo

Se havia coisa que não mudava naquela rua movimentada do centro da cidade era a presença de um sem-abrigo e do seu inseparável cão à entrada da galeria comercial. Fizesse frio ou calor, todos santos dias lá estava o pobre homem com uma guitarra na mão, sentado na calçada com a sua roupa imunda e gasta.
 
A maior parte das pessoas não olhava para ele nem parava para escutar a sua música e se o fazia era mais por causa do cão que fiel e serenamente se aninhava à sua beira. Havia quem parasse só para fazer umas festinhas ao cão e se davam umas moedas era mais para que o senhor lhe pudesse dar alguma coisa de comer.
 
A Maria era uma menina que todos os dias passava por ali com a sua mãe a caminho de casa e em todas as ocasiões puxava-a pela mão para que pudesse ver de mais perto o sem-abrigo e o seu cão e ouvir alguma das suas canções. No entanto, jamais conseguiu parar mais de trinta segundos.
 
Via diariamente o sem-abrigo com o seu olhar cansado, faminto e distante e a sua solidão ignorada por todos consumia a criança por dentro. Impressionava-a vê-lo enrolado numa manta velha em cima de umas quantas folhas de jornal e comovia-se com a tristeza espelhada no seu rosto sofrido e com as suas mãos enrugadas e calejadas e com as unhas roídas e sujas.
 
Mas aquilo que mais chamava a atenção da Maria era que, apesar de todo aquele cenário miserável, o sem-abrigo sorria para as pessoas que passavam, enquanto cantarolava umas coisas e tocava a sua guitarra.
 
Um dia, a Maria fez uma birra de todo o tamanho e pediu à mãe que parasse junto ao senhor porque ele estava a cantar uma música de que gostava muito. Apenas para que não ficasse toda a gente a olhar, a mãe lá cedeu e deixou que a filha se aproximasse. Quando terminou a canção, a Maria disse:
 
- Olá, eu sou a Maria. Como se chama?
 
O sem-abrigo olhou-a fixamente e, com um sorriso sereno, respondeu:
 
- Olá, Maria. Eu sou o Manuel. Sabes que já ninguém me chama pelo meu nome há muitos meses? Aliás, já não falo com ninguém por estes lados há muito tempo… Obrigado por estares aqui a falar comigo.
 
A mãe da Maria, com um ar fechado e sombrio, disse à filha:
 
- Pronto, Maria. Já falaste com o senhor. Não sejas chata. Agora temos que ir que se faz tarde.
 
Mas a Maria aproximou-se do Manuel, fez uma carícia ao cão e também quis saber o seu nome. Chamava-se Bingo. Tinha sido abandonado dentro de um caixote de lixo ainda muito pequenino e desde que o Manuel o encontrou tornou-se o seu maior amigo.
 
Então, a Maria olhou o Manuel nos olhos, pegou nas suas mãos e disse-lhe:
 
- Há muito tempo que queria falar consigo. Não pense que tenho pena de si… o que quero dizer-lhe é que gosto de si. Admiro-o muito porque não desiste, sorri, gosta de animais e canta e toca muito bem.
 
O Manuel ficou com lágrimas nos olhos e esboçou o sorriso mais bonito do mundo. Então, disse-lhe:
 
- Maria valeu a pena ter vivido só para ouvir o que acabaste de me dizer. Obrigado. Não sei se já ouviste falar de um filósofo chamado Aristóteles… ele dizia que ‘a música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição’.
 
Enquanto a mãe da Maria olhava repetidamente para o relógio, a menina respondeu:
 
- É mesmo… eu adoro música. Um dia sem música é um dia perdido… às vezes não são precisas palavras… a música é suficiente. Ela tem um poder incrível de dizer o que sentimos e pensamos… E como é que toca tão bem?
 
O Manuel, depois de olhar pensativamente para as suas mãos sujas e cansadas, disse:
 
- A música é a minha vida e a minha vida é a música. Ela é uma linguagem universal que une de uma maneira indescritível as pessoas. O que seria de mim sem a minha voz e sem as minhas mãos? Canto, toco a minha guitarra e ainda tenho tempo de sobra para ajudar quem mais precisa.
 
A Maria ficou repentinamente intrigada e disse?
 
- Não percebi uma coisa… então, o Manuel parece viver sozinho na rua… com a exceção do Bingo, claro… e, apesar de abandonado por todos, ainda ajuda as pessoas?
 
O Manuel respondeu:
 
- Maria… é verdade que sou um sem-abrigo… e o meu cãozinho e a minha música fazem-me sentir bem. Mas aquilo que me faz verdadeiramente feliz é levantar-me daqui e, com o pouco dinheiro que me dão, ir ao encontro de outros sem-abrigo que estão pior do que eu, falar um bocadinho com eles e levar-lhes alguma coisa para comerem.
 
A mãe da Maria ficou comovida com as palavras do Manuel e, inesperadamente, agarrou as suas mãos e beijou-as. Depois, disse:
 
- Manuel perdoe-me. Tenho sido tão cruel consigo… passo todos os dias por si e nunca lhe dei uma palavra ou uma simples moeda. Sou uma egoísta de todo o tamanho… Sabe, eu rezo a Deus… tenho fé… mas amo pouco e mal… Agora percebo aquela frase da Madre Teresa de Calcutá que dizia que ‘as mãos que ajudam são mais sagradas que os lábios que rezam’.
 
Enquanto a Maria estava incrédula com a inesperada reação da mãe, o Manuel disse:
 
- Não tenho mérito algum… Fiquei desempregado e deixei de poder pagar o meu quarto. Tive que vir viver para a rua… Mas não deixei de ter mãos para lutar pela minha sobrevivência e pela minha felicidade. Um filósofo, de nome Epicuro, dizia que ‘o impossível reside nas mãos inertes daqueles que não tentam’. Não temos nas nossas mãos a solução para todos os problemas do mundo mas diante de todas as adversidades temos as nossas mãos.
 
A Maria assentiu que sim com a cabeça e, sentou-se com a mãe no chão junto ao Manuel. Então, a mãe da menina disse:
 
- Olhem, não sei se conhecem a oração dos cinco dedos do Papa Francisco… um dia, ele disse que, quando queria orar, olhava para as mãos e, fixando-se em cada um dos dedos, inspirava-se para pedir a Deus pelas pessoas.
 
A Maria respondeu:
 
- A sério? E como é que era?
 
A mãe da criança respondeu:
 
- Ele dizia que o dedo polegar, como é o que está mais próximo do nosso corpo, podia convidar-nos a pensar e rezar por quem está mais próximo de nós… aquelas pessoas de quem nos recordamos mais facilmente, os nossos familiares, amigos, vizinhos… trata-se de uma doce e saudável obrigação. O dedo indicador podia desafiar-nos a rezar por quem tem a função de dar indicações aos outros… aqueles que ensinam, educam, instruem, curam e tratam… os professores, médicos, padres, etc. Eles necessitam de apoio e sabedoria para indicar a direção correta aos demais. O dedo médio, que é o maior dos cinco, podia inspirar-nos a não esquecer de orar pelos nossos governantes e pelas pessoas que gerem o destino das nossas terras e orientam as populações… Eles precisam, sem dúvida, da orientação de Deus.
 
O Manuel e a Maria estavam encantados com as dicas do Papa Francisco e queriam saber o sentido dos restantes dedos das mãos. Então, a mãe da Maria continuou:

 

- O dedo anelar, que é o nosso dedo com menos força, podia recorda-nos que devemos rezar pelos mais frágeis, pelos que têm desafios difíceis a enfrentar, pelos doentes e, como é o dedo da aliança, pelos namorados e casados. Finalmente, o dedo o mindinho, que é o dedo mais pequeno, podia convidar-nos a rezarmos por nós mesmos e a sentirmo-nos pequenos, humildes e simples diante de Deus e do próximo. É que, depois de rezarmos pelos outros e pelas suas necessidades, conseguiremos compreender melhor aquilo que precisamos verdadeiramente, olhando as coisas na justa perspetiva.

 

Os três sentiam-se felizes por estarem juntos ali e deram as mãos. Então o Manuel disse:

 

 

- O Bob Marley dizia que ‘quando todos os homens tiverem dado as mãos, não existirão mãos para segurar em armas’… e o Voltaire afirmava que ‘o mundo está nas mãos daqueles que têm coragem de sonhar e de correr o risco de viver os seus sonhos’.

 

A mãe da Maria disse:

 

- Quem diria que o Manuel era tão inteligente… Hoje vai connosco para nossa casa com o seu cãozinho. Tomará um duche quente, jantará à nossa mesa e dormirá no quarto que temos para os hóspedes. Amanhã irei ajudá-lo a encontrar um trabalho na área da música pois conheço umas pessoas…

 

O Manuel agradeceu comovido e começaram todos a cantar uma canção popular e muitas pessoas aproximaram-se e cantaram também. Depois, o Manuel convidou todos a fazer uma roda e a dar as mãos e disse:

 

- Os espaços que temos entre os dedos das mãos foram feitos para serem preenchidos pelos dedos de outras pessoas… Aquilo que nos realiza e faz felizes não são as coisas que podemos agarrar com as nossas mãos mas as pessoas e as causas nobres que abraçamos com elas e que colocamos nas mãos de Deus.

 

E quando todos batiam palmas às palavras do Manuel, a Maria gritou alegremente:

 

- Mãos ao alto! Isto é um abraço…

 

E todos deram uma enorme e sonora gargalhada e trocaram efusivos e afetuosos abraços.

 

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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