Conto: CAIO, O SOLDADO ROMANO
Havia um reboliço pouco habitual por aquelas bandas e um soldado romano de nome Caio andava intrigado. Era habitual que, com a aproximação da festa da Páscoa, fossem mais que muitos os judeus que fossem a Jerusalém mas ele sentia um ambiente fora do comum.
Os soldados romanos haviam recebido expressas instruções superiores para estarem muito atentos e cortar pela raiz qualquer confusão entre a multidão. Havia boatos de que um tal Jesus da cidade de Nazaré percorria há três anos todo o país e se aproximava de Jerusalém.
Caio ouvira dizer que se tratava de um homem bondoso e destemido, que contava histórias, curava doentes e era seguido sempre por muita gente. Tinha um grupo de doze amigos que andava sempre com ele para todo o lado e procedia como quem tinha autoridade. Apesar de ser judeu, atrevia-se a falar de Deus de uma forma diferente e até tecia comentários sobre um tal reino de Deus e isso ia causando algumas reações entre as pessoas mais religiosas.
Se a coisa se ficasse por aí, não viria mal ao mundo. O problema era que, pelos vistos, pronunciava-se frequentemente sobre justiça, fraternidade, amor e verdade e, aos poucos, muitos começaram a ver nele um revolucionário capaz de eventualmente liderar uma rebelião contra o Império Romano ali instalado e isso seria um risco que não se poderia correr.
Estava Caio em serviço de vigilância no centro da cidade e na conversa com os seus colegas romanos quando ouviu gritos e música. Imediatamente, dirigiram-se para aquela zona e viram uma multidão que estendia as suas capas pelo chão e muitos cortavam ramos das árvores e espalhavam-nas pelo caminho. Caio percebeu logo que poderia ser o tal nazareno que chegava e, provavelmente, com um exército para invadir Jerusalém e expulsar os romanos.
Qual não foi a sua surpresa quando o que viu foi um homem em cima de um jumento e rodeado por muita gente que cantava em altos brados:
- Hosana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!
Toda a cidade estava alvoroçada mas, como Caio não viu armas nem guerreiros que poderiam constituir-se uma ameaça ou um perigo, ficou mais tranquilo e limitou-se a perguntar a uma velhota quem era aquele. Ela respondeu:
- Não sabes? É Jesus, o profeta de Nazaré, da Galileia.
Caio, experiente como era, não deixou o caso por ali e decidiu discretamente seguir o tal galileu para averiguar para onde se dirigia a seguir. E ainda bem que o fez pois Jesus fora em direção ao Templo e armou uma grande confusão ao expulsar dali os comerciantes e derrubando as mesas dos cambistas e as bancas dos vendedores de pombas. O ar sorridente, sereno e simpático que Caio vira em Jesus ao entrar na cidade tinha desaparecido e ouvira claramente que ele denunciava que aquele local sagrado se tivesse transformado num covil de ladrões e não fosse uma casa de oração. Viu, ainda, que muitos se aproximavam de Jesus e ele curava vários cegos e coxos.
Caio deixou prudentemente que as coisas serenassem por si mesmas já que era aparentemente um problema religioso entre a população, fez o seu relato dos acontecimentos junto dos superiores hierárquicos e não deixou de invocar interiormente os seus inúmeros deuses e deusas para que tudo acalmasse e pudesse regressar brevemente a Roma para junto da sua mulher e filhos.
Nos dias seguintes, tudo parecia calmo, apesar de Caio ter ouvido rumores entre os habitantes de Jerusalém que os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam maneira de se apoderarem do tal Jesus para lhe darem a morte. Ouvira até dizer que um dos amigos do nazareno estaria na disposição de o atraiçoar a troco de algum dinheiro.
Caio tornara-se o soldado da maior confiança de Pilatos e recebera a incumbência de ser quem mais de perto acompanhasse a estadia de Jesus na capital. Soubera que no primeiro dia da celebração judaica dos Ázimos, ele cearia com os seus discípulos na sala do andar de cima de uma casa de um bairro próximo e arranjou maneira de espreitar lá para dentro através de uma árvore da rua. Viu Jesus a partir um pão a dá-lo em pedaços aos que comiam com ele e o mesmo viu fazer com um cálice com vinho e todos a beberam dele.
Estiveram todos lá dentro a conversar um bom tempo mas, após o final da refeição, Caio viu que o grupo saíra de casa e, seguindo-os silenciosamente, apercebeu-se que se dirigiam para uma propriedade chamada Getsémani. Quase todo o grupo se deitou e começou a dormir e o Jesus parecia estar a rezar e manifestava pavor e angústia. No silêncio da noite, Caio ouvira nitidamente Jesus dizer:
- Pai, afasta de mim este cálice… vigiai e orai… já chegou a hora!
Escondido atrás de um muro, Caio achava tudo aquilo muito estranho e não percebia nada. Enquanto falava para os seus botões, viu chegar repentinamente uma grande multidão com espadas e varapaus e um homem, que Caio reconheceu como pertencente ao grupo dos doze discípulos do nazareno, e que deu um beijo na sua face. Logo prenderam Jesus e, apesar da reação adversa de alguns dos seus amigos, todos fugiram dali com medo.
Caio estava estupefacto com os novos desenvolvimentos do caso do galileu e cada vez se envolvia mais, não querendo perder nenhum pormenor. Aquela gente levara Jesus para a casa do Sumo Sacerdote dos judeus e lá se juntaram os príncipes dos sacerdotes, anciãos e escribas. Caio decidiu disfarçar-se e conseguiu entrar no meio da confusão. Do diálogo entre Jesus e aqueles todos, percebera que o acusavam de blasfémia e sentenciaram que ele era réu de morte. Muitos começaram a cuspir-lhe e a esbofeteá-lo. Caio não sabia o que pensar.
No dia seguinte, logo de manhazinha, Caio é surpreendido com a ordem expressa de Pilatos para que estivesse perto dele pois o pessoal do Sinédrio acabara de chegar ao palácio com Jesus. Caio ouvia os príncipes dos Sacerdotes a acusar Jesus de muitas coisas e ficava admirado com a sua serenidade, determinação e silêncio.
Como Pilatos todos os anos pela festa da Páscoa costumava soltar um prisioneiro que os judeus pedissem, mandou Caio ir buscar um tal Barrabás que, numa insurreição, havia cometido um homicídio. Tendo a seu lado Barrabás e Jesus, Pilatos perguntou quem queriam que ele libertasse e a multidão gritou pelo assassino, pedindo a crucifixão de Jesus. Isso intrigava Pilatos pois não via mal algum naquele homem. Caio começava a sentir pena de Jesus até porque Pilatos para agradar à multidão, lavou as mãos, soltou Barrabás e, depois de mandar Caio açoitar Jesus, entregou-o para ser crucificado.
Caio, que era um homem bom e justo, estava a ficar com problemas de consciência pois a sua missão era servir o Império e sempre o fizera com rigor e fidelidade cega mas, agora, via ali muita intolerância e maldade injustificável. Apesar de tudo, mandou revestir Jesus de um manto de púrpura e um outro soldado decidiu fazer uma coroa de espinhos e pôs-lha na cabeça, chamando-lhe com escárnio: ‘Rei dos Judeus’. Alguns soldados riam-se daquilo tudo, cuspiam-no e batiam-lhe na cabeça com canas. Depois, tiraram-lhe o manto e vestiram-lhe as suas roupas, encaminhando-o com uma cruz às costas para o crucificarem.
Pelo caminho, uma multidão olhava e as reações eram mais que muitas. Como Jesus já caíra três vezes ao chão com o peso da cruz e por causa do caminho irregular e montanhoso, Caio, compadecido do pobre nazareno, pediu a um homem que levasse por alguns metros, o madeiro da cruz.
Chegaram ao lugar do Gólgota, que quer dizer lugar do Crânio, e Caio deu ordens para pregar Jesus na cruz. À esquerda e à direita do nazareno, os soldados romanos crucificaram também dois salteadores e colocaram uma inscrição na cruz de Jesus que dizia a razão da condenação: ‘Jesus Nazareno Rei dos Judeus’.
Enquanto alguns soldados na galhofa sorteavam e repartiam as vestes do condenado entre si, chamou a atenção de Caio a mãe e um amigo de Jesus que estavam junto à cruz e que trocavam umas breves palavras, bem como algumas mulheres que observavam tudo aquilo de longe. Caio olhou fixamente o rosto de Jesus na cruz e, à hora nona, ouviu-o exclamar em alta voz:
- Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?
Enquanto um soldado embebia uma esponja em vinagre e dava-a numa cana ao crucificado, Caio estava cada vez mais impressionado com tudo aquilo e mais ficou quando, viu Jesus soltar um grande brado e expirar. O céu ficou muito escuro e trovejou forte. Passados alguns momentos, o centurião disse-lhe:
- Caio, verdadeiramente este homem era o Filho de Deus.
Ao cair da tarde, o centurião disse a Caio que, visto que o condenado já estava morto, Pilatos permitira que um tal de José de Arimateia levasse o seu corpo para o sepultar ali perto. Caio, sensibilizado com aquelas cenas todas, pediu autorização para ver o que ia acontecer. Descido o corpo de Jesus da cruz, o homem envolveu-o num lençol e depositou-o num sepulcro cravado na rocha e fechou a sua entrada com uma pedra redonda.
Caio estava emocionado e ofereceu-se para ser um dos guardas que vigiariam o túmulo já que os príncipes dos sacerdotes e os fariseus tinham manifestado a preocupação a Pilatos de que os discípulos do nazareno roubassem o seu corpo e depois dissessem que ele tinha ressuscitado, como ele mesmo tinha dito que ia acontecer.
No primeiro dia da semana, Caio e os seus colegas foram surpreendidos com um enorme terramoto e um clarão muito forte quase os impediu de ver o que estava a passar-se. Apenas se aperceberam que a pedra do túmulo fora removida e ouviam alguém a falar com duas mulheres e dizia:
- Nada receeis… sei que buscais a Jesus crucificado. Não está aqui pois ressuscitou, como havia dito. Ide depressa dizê-lo aos seus discípulos!
Alguns soldados cheios de medo foram à cidade dizer aos sacerdotes o que tinham visto e ouvido e, a troco de muito dinheiro, espalharam a notícia de que os discípulos do nazareno os tinham atacado violentamente e haviam conseguido roubar o corpo.
Por sua vez, Caio não saiu daquele local e chorou. Sentiu, de uma forma inexplicável, a presença do ressuscitado e, olhando para o alto, orou e disse que acreditava que ele era o filho do verdadeiro e único Deus e que queria segui-lo e testemunhar por todo o mundo tudo quanto tinha ouvido dizer dele e tudo quanto tinha visto naqueles dias.
Caio apresentou a demissão ao centurião romano e passou a fazer parte das fileiras do grupo daqueles a quem chamavam ‘cristãos’.
[photo credit: DSC_0582 via photopin (license)]