Vais para o fim do mundo fazer o quê?! (Relatos de experiências de voluntariado em África)
São cada vez mais os jovens que decidem partir para lugares distantes e para viver uma experiência gigante o suficiente para lhes mudar a vida. Relevam os perigos que lhes podem surgir numa viagem a um país desenvolvido deficientemente. Às vezes, pouco seguro até. Mas eles aí estão. A fazer as malas para partir. A preferir paisagens esquecidas. A preferir a pobreza, a miséria e a dor. Com o mesmo dinheiro que gastam numa viagem a África poderiam investir numas maravilhosas férias de conforto num qualquer destino paradisíaco. Não é isso que querem. Não é isso que procuram. Por vezes à revelia da família e dos amigos, suspendem a sua vida de todos os dias para fazer o bem num lugar para onde poucos querem ir. “Mas vais para o fim do mundo fazer o quê?!” Esta é uma das perguntas que fazem os que são confrontados com a decisão da partida. Não sei qual é a resposta mas sei que nenhuma resposta é igual. No coração de cada um há motivos diferentes, impulsionados pela história pessoal de cada um, por sentimentos que nunca ninguém experimentou, por uma sensação de vazio que não é suprimida por uma vida aparentemente cheia de tudo.
O Centro de Reabilitação Psicossocial das Mahotas acolhe crianças que percorrem caminhos duros e difíceis. Situa-se nos arredores de Maputo, no coração de um bairro profundamente pobre. Os que aí vivem não têm água potável, não têm um sistema sanitário e de higiene, não têm um sistema de eliminação do lixo e por isso vivem cercados num ambiente de constante incineração que não é suficiente para filtrar as quantidades absurdas de lixo que se acumula. É uma realidade para gente muito valente. As crianças aprendem a ser valentes desde que nascem. Mas algumas têm a vida ainda mais dificultada pelas suas doenças (pela SIDA, pela tuberculose, pela desnutrição, pelas sequelas da malária mal curada, pela doença mental não compreendida) e pelas suas deficiências físicas. Este Centro acolhe crianças necessitadas num regime diurno (como uma creche) e ajuda-as a lidar com os inúmeros problemas que todos os dias enfrentam. Para além das suas limitações individuais algumas crianças são negligenciadas pela família. O Centro das Mahotas assegura as refeições das crianças e utentes durante o dia e garante que, quando dali saiam, tenham algo para comer também. Encarrega-se do acompanhamento médico e terapêutico necessário, suportando-se com uma rede de técnicos especializados que todos os dias cuidam dos que ali estão. Da equipa técnica fazem parte as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus que gerem este Centro com o amor e a alegria que lhes é característica. Além deste acompanhamento, o Centro garante ainda que algumas das mães das crianças que frequentam o Centro possam trabalhar ali, recebendo o apoio e o sustento necessário para as suas famílias. Além de todas estas valências na parte infantil, o centro tem ainda uma ala para adultos com deficiência e doença mental. Todos eles têm atividades durante o dia e são ajudados a enfrentar os seus problemas, doenças e limitações. Têm ainda a possibilidade de se integrar profissionalmente no próprio centro.
Ficam os testemunhos de quem por lá esteve, de quem lá viveu e de quem sente que valeu a pena ir ao fim do mundo e voltar.
Não é uma coisa que decides de um dia para o outro. Não me levantei um dia de manhã e decidi que tinha vontade de fazer isto. Foi algo que fui vivendo pouco a pouco e não apenas um sentimento passageiro. Mas se és daqueles que julga que uma experiência destas te mudará para sempre, posso garantir-te que estás certo.
Cheguei aqui com a ideia de mudar o mundo. Mil e uma coisas em mente, querer ajudar as pessoas e arrancar um sorriso a quem dele necessitasse. Mas a realidade é outra. Apercebes-te que fizeste parte de uma parte muito pequena das suas vidas e que não podes salvar o mundo em dois dias. A verdade é que as pessoas são felizes com o que têm e não precisam de mais do que isso. O pouco que têm é para partilhar. Os problemas que nós temos não são nada comparados com os deles. A partir de agora sei que não vou conseguir tolerar certas coisas e que vou ser pior que a minha mãe quando disser aos meus filhos para comerem tudo o que está no prato. Ter visto uma realidade tão diferente da minha mudou-me por completo. Não sei se me mudou para melhor ou para pior mas não tenho dúvidas de que cresci como pessoa. Senti uma satisfação pessoal imensa que nunca tinha imaginado possível.
Xavier Velasco – Tem vinte e três anos. É professor de dança. Foi voluntário no Centro das Mahotas durante três meses no ano passado. Quando deixou Moçambique rumou às Filipinas para continuar o seu trabalho de voluntariado num outro centro psiquiátrico. Este ano regressou às Mahotas para visitar as crianças do centro onde esteve, assim como as crianças do Orfanato da Missão São Roque (também em Moçambique). Foi o mentor da criação de um processo de apadrinhamentos das crianças do mesmo orfanato depois de ter conhecido a sua realidade aquando da sua primeira ida à Moçambique em 2014. Para as crianças das Mahotas, Xavier Velasco era chamado e conhecido como “Papá Xavito”. O maravilhoso vídeo que acompanha estes textos é da sua autoria.
Parece-me impossível que já tenha passado um ano desde que voei rumo a Moçambique. Embarquei, por três meses, numa experiência de voluntariado no Centro de Reabilitação Psicossocial das Mahotas, nunca imaginando quão significativa viria a ser esta viagem na minha vida. Foram muitas as experiências vistas e vividas com as crianças, adultos, trabalhadores, Irmãs e voluntários com quem tive o privilégio de partilhar este incrível período. Recordo com carinho e saudade os dias no centro. Desde o dar de comer às crianças, o brincar com elas, às tentativas de melhorar o seu conforto e bem-estar. Com eles aprendi a valorizar, ainda mais, o poder de um sorriso, de um gesto tão singelo como uma festa, o quão feliz se pode ser mesmo tendo tão pouco, a força e a esperança que transmitiam no seu olhar mesmo enfrentando e lutando perante grandes adversidades, ensinando-nos, dia após dia, a nunca desistir. Para mim, foram e serão sempre uns “pequenos heróis”. No Centro tive ainda a possibilidade de conviver com os adultos na área da saúde mental. Com eles, mais do que ensinar, pude aprender muito. Aprender sobre a sua cultura, o encanto das suas músicas e das suas danças, as histórias por que passaram, as dificuldades e as reais necessidades daquela gente. Em muitas das situações, apoderava-se de mim um sentimento de tristeza e impotência, por querer mudar tanta coisa e saber que pouco ou nada poderia fazer. Poder partilhar estas angústias e receios com os restantes voluntários bem como todas as outras grandes vivências por que passámos tornou, sem dúvida, esta experiência ainda mais enriquecedora.
Por fim, é de enaltecer a luta e inteira dedicação das Irmãs a este Centro assim como toda a hospitalidade, carinho e preocupação com que recebem os voluntários que por lá passam. Por todos os ensinamentos que levo para a vida o meu sincero khanimambo! (palavra em dialeto moçambicano para dizer obrigada)