Missa em Santa Marta: Fariseus de hoje

Vaticano 20 outubro 2017  •  Tempo de Leitura: 12

Nunca se pode fechar a porta na cara aos pais que pedem o batismo para o seu filho, mesmo se não são casados pela igreja: o cristão, e sobretudo o pastor, nunca deveriam esquecer a gratuitidade da salvação, a proximidade de Deus e o pragmatismo das obras de misericórdia, materiais ou espirituais. Foi o convite vigoroso a abrir sempre as portas aos outros, e também a si mesmos, sugerido pelo Papa Francisco na missa celebrada na manhã de quinta-feira, 19 de outubro, em Santa Marta.

 

«Este trecho do evangelho – observou imediatamente o Papa, referindo-se ao trecho de Lucas (11, 47-54) – enquadra-se o estilo do evangelista» que é característico «quer Lucas quer Mateus». É, «poderíamos dizer», um «estilo» que indica os «ais: Ai de vós, doutores da lei; ai de vós, fariseus». Com efeito, explicou Francisco, «o Senhor é muito forte, muito forte: repreende com muita força». Em particular, «no trecho de hoje há uma expressão que faz refletir: “Ai de vós, doutores da lei, que tirastes a chave da ciência; vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam”».

 

Na realidade, reconheceu o Pontífice, «este versículo não é muito claro: o que significa “tirar a chave da ciência”, com a consequência de não entrar no reino nem sequer deixar entrar os outros?». E assim, afirmou o Papa, «este tirar a capacidade de compreender a revelação de Deus, de compreender o coração de Deus, de compreender a salvação de Deus – a chave do conhecimento – podemos dizer que é um esquecimento grave». Porque «esquecemos a gratuitidade da salvação, esquecemos a proximidade de Deus e a sua misericórdia». E precisamente «aqueles que se esquecem da gratuitidade da salvação, a proximidade de Deus e da sua misericórdia levaram embora a chave do conhecimento». A ponto que, insistiu o Papa, «não se pode compreender o Evangelho sem estas três coisas».

 

Por conseguinte, «esqueceram a gratuitidade». E «Paulo fala disto na primeira leitura» disse ainda Francisco referindo-se ao trecho da carta aos romanos (3, 21-30): sois «justificados gratuitamente pela sua graça». Mas, advertiu o Pontífice, «esta gente esquece-se de que tudo é gratuito, que foi a iniciativa de Deus que nos salvou e declaram-se da parte da lei procurando agarrar-se à lei e, quanto mais for pormenorizada, melhor é: a salvação está ali para eles». E «assim – prosseguiu – estão tão agarrados à lei que não recebem a força da justiça de Deus: há um engano por detrás da justificação de si mesmos com a lei: “Eu faço isto, isto e isto e sou feliz, estou justificado” – “Mas isto como o devo fazer?” – “Não, tens que fazer assim, assim e assim” – “Mas este “assim” como o devo fazer?” – “Assim, assim e assim”».

 

Eis que, afirmou o Papa, estes «chegam a uma montanha de prescrições e para eles esta é a salvação: perderam a chave da inteligência que, neste caso, é a gratuitidade da salvação». Na realidade «a lei é uma resposta ao amor gratuito de Deus: foi Ele que tomou a iniciativa de nos salvar e por tu me teres amado tanto, eu procuro seguir o teu caminho, aquele que me indicaste», numa palavra, «eu cumpro a lei». Mas «é uma resposta» porque «a lei é sempre uma resposta e quando se esquece a gratuitidade da salvação cai-se, perde-se a chave da inteligência da história da salvação».

 

E ainda, insistiu o Pontífice, aqueles pessoas «perderam a chave da inteligência porque perderam o sentido da proximidade de Deus: para elas Deus é aquele que fez a lei» mas «não é este o Deus da revelação». Na realidade «o Deus da revelação é o Deus que começou a caminhar connosco desde Abraão até Jesus Cristo: Deus que caminha com o seu povo». Por isso, «quando se perde esta relação de proximidade ao Senhor, cai-se nesta mentalidade obtusa que crê na autossuficiência da salvação com o cumprimento da lei».

 

Eis então «a proximidade de Deus», frisou Francisco, referindo-se a «um trecho muito belo, quase no fim cap. 31 do Deuteronómio, quando Moisés acaba de escrever a lei, entrega-a aos levitas, aqueles que guardavam a arca, e diz-lhes “tomai este livro da lei e ponde-o ao lado da arca aliança do Senhor vosso Deus – fala ao povo – porque conheço a tua rebelião e a tua dura cerviz”».

 

«Ao contrário, perto do Senhor a lei é revelação do Senhor mas quando falta a proximidade de Deus, a lei sobressai, torna-se autónoma, ditatorial». De resto «pensemos na oração: quando falta a oração não se pode ensinar a doutrina, nem sequer fazer teologia, nem teologia moral». Além disso, «a teologia faz-se de joelhos, sempre perto de Deus: o povo tinha perdido o sentido da proximidade, esquecendo-se da proximidade de Deus».

 

Depois, explicou o Papa, agindo assim aquelas pessoas também «perderam a memória da misericórdia de Deus». Com efeito, «na palavra de Deus, o Senhor repete muitas vezes: “quero misericórdia, não sacrifícios”». E «esta proximidade de Deus, da qual falamos, chega ao ponto mais alto de Jesus Cristo crucificado». O próprio «Paulo nos recorda que fomos justificados pelo sangue de Cristo, pela carne de Cristo, pelo sangue de Cristo». Ao contrário, o povo acaba por se esquecer da «carne de Cristo: esquece-se da misericórdia e por isso acaba sem conhecer o cerne da lei, que é sempre a misericórdia». A tal ponto que «as obras de misericórdia são a pedra angular do cumprimento da lei porque» nos permitem «tocar a carne de Cristo, tocar Cristo que sofre numa pessoa, tanto corporal como espiritualmente».

 

A propósito, o Papa convidou a pensar «no rico Epulão que, do inferno, pediu a Abraão que enviasse um dos mortos a suplicar aos seus irmãos, de forma que se salvassem». Mas «o que diz Abraão: “Não, ele não vai, porque se não são capazes de ouvir Moisés e os profetas, não ouvirão nem sequer se alguém ressurgir dos mortos”». Com efeito, «se não têm misericórdia como ele — Epulão não a tinha — de nada vale!». Portanto, Francisco apresentou «estes três esquecimentos» que «são a raiz: o esquecimento da gratuidade da salvação, o esquecimento da proximidade de Deus e o esquecimento da misericórdia». Assim, o afastar-se da salvação está também na raiz do «tirar a chave do conhecimento: assim não se conhece a salvação». Por isso, o Pontífice exortou a interrogar-se: «Quais são as consequências?».

 

Precisamente «o trecho evangélico de hoje frisa duas delas», foi a resposta. «Antes de tudo, o fechamento: “Vós não entrastes, e impedistes que o fizessem quantos queriam entrar”». Sim, «aquelas pessoas fechavam a porta aos fiéis, e os fiéis não entendiam: elas, toda a sua teologia moral, praticavam o maneirismo intelectual, mas não alcançavam o povo e, assim, afastavam as pessoas. Não, esta não é a religião que eu queria: esta não é a verdade da salvação em Jesus Cristo». E «aqui eu penso na responsabilidade que nós, pastores, temos: quando nós pastores perdemos ou tiramos a chave da inteligência, fechamos a porta tanto a nós como aos outros».

 

«Vem-me à mente — revelou — e digo-o para a nossa edificação» que «o meu país muitas vezes ouvi falar de párocos que não batizavam os filhos de mães solteiras, porque não nasceram no casamento canónico: fechavam a porta, escandalizavam o povo de Deus porque o coração destes párocos tinha perdido a chave do conhecimento». Mais ainda: «Sem ir tão distante no tempo e no espaço, há três meses, num povoado, numa cidade, uma mãe queria batizar o filho recém-nascido, mas estava casada civilmente com um divorciado. O pároco disse “sim, batizo a criança, mas o teu marido é divorciado e deve ficar fora, não pode estar presente na cerimónia”». E «isto acontece hoje», porque «os fariseus, os doutores da lei não pertencem àqueles tempos: até hoje há muitos».

 

Por este motivo, afirmou o Papa, «é preciso rezar por nós, pastores, para que não percamos a chave do conhecimento a não fechemos a porta a nós e às pessoas que quiserem entrar».

 

«E a segunda consequência — prosseguiu — recorda-a até o Evangelho: “Quando saiu dali, os escribas e fariseus começaram a tratá-lo de modo hostil e a deixá-lo falar sobre muitos assuntos, armando-lhe ciladas e procurando surpreendê-lo nalguma palavra que saía da sua boca”». Esta é «uma atitude corrupta» e «é a segunda consequência: quando se perde a chave do conhecimento, quer na gratuidade da salvação, quer na proximidade de Deus, quer nas obras de misericórdia, chega-se à corrupção». E «os pastores daquela época como acabam? Armando ciladas ao Senhor para o fazer cair na armadilha e depois para o acusar e condenar, como fizeram». Concluindo, o Pontífice sugeriu que se peça «ao Senhor a graça da memória da salvação, da gratuidade da salvação, da proximidade de Deus — e isto nos leve a rezar — e da realidade das obras de misericórdia que o Senhor quer de nós, quer sejam materiais ou espirituais, mas concretas». Com o desejo de que o Senhor «nos conceda esta graça» para que «nos possamos tornar pessoas que ajudam a abrir a porta, tanto a nós mesmos como aos outros».

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