Pai

Crónicas 19 março 2018  •  Tempo de Leitura: 8

Nem todos temos a experiência de sermos pais, mas todos temos a experiência de sermos filhos. Mesmo aqueles que perderam os pais demasiado cedo ou nunca chegaram a conhecê-los, e até aqueles que foram abandonados ou mal amados sabem a importância dum pai. Na ausência ou em presença, pai é pai. A sua marca é indelével e a sua influência (ou a sua carência) estende-se pela vida fora.

 

Um verdadeiro pai ajuda a crescer, educa, estrutura o carácter, ensina coisas banais e especiais, tem paciência para ouvir, enche de confiança, mostra mundos novos, consola na tristeza, alegra-se com as alegrias, leva pela mão, protege, sabe sempre como espantar os medos e convocar a coragem, conta histórias antigas, fala dos avós e de outros tempos, diz coisas que mais ninguém diz e faz coisas que mais ninguém faz. Um bom pai faz perguntas directas, não evita as conversas difíceis, diz o que tem a dizer mesmo quando isso lhe custa e, tal como os bons mestres, espera que os filhos percebam mais à frente aquilo que nem sempre conseguem compreender ou aceitar de imediato.

 

Quem teve a sorte de ser filho de um bom pai sabe que é um homem capaz de tudo isto e muito mais. Capaz de ralhar e perder a cabeça, também, mas com a mesma verdade com que abraça e pega ao colo. Um homem aprende a ser pai com o seu primeiro filho, mas não se relaciona do mesmo modo com todos. Pode ter os mesmos critérios e tentar ser igualmente justo, mas se for realmente um pai bom, sabe que tem que ser único e especial para cada filho. E procura tratar cada um de forma diferente, justamente por serem todos iguais no seu coração. A igualdade nas famílias, como fora delas, mede-se pela forma diferenciada como cada um é tratado. À medida de cada um. Nem mais, nem menos.

 

Não ter pai ou não guardar a memória de um pai é um drama. Uma ferida que nunca sara e pode ficar aberta para sempre. Atravessar uma vida inteira sem a sua presença, ou perdê-lo demasiado cedo, é uma grande tristeza. Um pai faz uma falta terrível. Para tudo. Para dar colo, para ensinar a andar e até a nadar, mas também para orientar e dar exemplo. Para que os filhos possam aprender com ele a lidar com as conquistas, mas também a viver a dor e os sofrimentos. A mãe e outras pessoas igualmente queridas podem estar presentes nos momentos marcantes ou inaugurais dos primeiros passos, das primeiras braçadas ou das primeiras pedaladas numa bicicleta sem rodinhas, mas não é a mesma coisa. O orgulho de um pai, quando sente no filho a confiança para caminhar, para nadar ou para desatar a andar sozinho de bicicleta é inigualável. Todos os filhos pequenos mereciam ter um pai para estes e outros momentos de viragem, mas muito mais importante que tê-lo para as coisas inaugurais, é contar com ele para as gargalhadas e as lágrimas, sabendo-o próximo todos os dias, durante longos anos.

 

Infelizmente nenhum pai dura para sempre. Nunca saberemos quando será o seu último dia, mas esse dia chega muitas vezes quando menos esperamos. Acordamos com pai e adormecemos órfãos. Assim mesmo. E no momento em que o perdemos, percebemos que não estávamos preparados. Por mais velho que seja, parece que nunca é suficientemente velho para partir. Egoisticamente apetece que fique connosco muito mais tempo, até para podermos ainda reparar alguma coisa que, porventura, precise de ser reparada ou feita de novo. Ser pai e ser filho implica perdoar e ser perdoado. Exige aceitação e perdão, pois nenhum pai é perfeito e nenhum filho é sem mancha. E o tempo é, como dizia Yourcenar, um grande escultor. O tempo serve para nos afastarmos e voltarmos a aproximar, porque há realmente um tempo para tudo. E é esse tempo que apetece aproveitar, mas nem sempre nos é dado. Ou não é dado a todos na mesma medida.

 

Uma das grandes marcas que ficam para a vida são as memórias das conversas e dos abraços de pai, seja quando os pais são de abraçar com naturalidade, seja quando nem sequer têm facilidade para o fazer. Se o abraço demora ou custa a chegar, sabe ainda melhor. Mas tão vital como receber abraços é (re)aprender a dá-los. Na idade adulta a vida torna-se tão acelerada e tão exigente, que demasiadas vezes esses abraços ficam por dar. E muitas palavras ficam por dizer, também. Quando pais e filhos deixam de morar juntos, tudo se complica. As visitas nem sempre são regulares, a distância parece que aumenta (e em certos casos aumenta mesmo, de forma radical) e tudo é feito numa vertigem.

 

Acontece que os pais não são eternos. Não duram para sempre, embora nos custe acreditar nessa realidade. Se tivemos a sorte de ter uma vida longa com pais presentes e próximos, eles chegam a parecer-nos eternos. Mas não é verdade. Os pais morrem e nós nunca saberemos o dia. Essa é a nossa única certeza. Tarde ou cedo, quando acontece sentimos que o mundo se torna um lugar estranho. Ao perdermos o pai, perdemos protecção. Mesmo quando o pai não era de proteger os seus filhos ou, pelo contrário, os enchia de preocupações, a sensação é sempre de perda irreparável. Se era um bom pai, perdemos o nosso escudo protector, a nossa grande referência, o nosso maior e mais forte abraço. Se o pai não era como gostávamos que fosse, também perdemos a ilusão de um dia podermos chegar a um ponto de equilíbrio ou até de reconciliação (nem que fosse uma reconciliação com o pai real, deixando para trás o pai ideal ou idealizado).

 

Porque os pais morrem e nunca saberemos o dia, nem a hora, importa ter muito presente esta verdade. Faz diferença vivermos com esta certeza, para não nos acontecer deixar alguma coisa por fazer ou por dizer. O meu pai morreu na semana passada, quando absolutamente ninguém esperava. Moramos juntos nos últimos anos e vivemos todos na mesma casa durante o tempo suficiente para que nada de essencial ficasse por dizer ou fazer, mas mesmo assim a perda é irremediável. Por isso escrevo para que outros filhos e outros pais não se esqueçam de que tudo passa, menos o amor. No coração de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos de amor, mesmo os mais ínfimos. No coração dos filhos também.

Artigos de opinião publicados no Observador

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