Os católicos líricos
Há por aí muito boa gente que gosta muito de Jesus e ainda bem. Não do Jesus histórico, nem do Cristo da fé, que na realidade são a mesma e única pessoa divina e humana, mas de alguém que só existe na sua mente, e que foi inventado à medida dos seus sonhos e caprichos e, às vezes também, das suas fraquezas. Alguns dos fãs desse tal messias que não existe senão na sua imaginação, até se consideram católicos, como se alguém o pudesse ser à margem da Igreja, da sua doutrina e comunhão.
Estes católicos líricos não gostam de obrigações, nem de normas, nem de proibições. Muito menos de cânones, anátemas ou condenações. Abominam dogmas, leis penais e excomunhões. Para eles, líricos, a fé cristã é um vago sentimento amoroso, que tanto dá para justificar o seu egoísmo – o amor-próprio não é também, amor?! – como todos os pecados cometidos por amor. Porque, afinal, Deus é amor…
Os líricos muito gostam de ouvir Jesus a falar das florzinhas do campo, dos passarinhos do céu e da simplicidade das pombinhas. Entendem que o grande pecado da Igreja foi a sua institucionalização: quando se organizou como sociedade, regulamentou a sua acção missionária, estabeleceu a hierarquia, produziu códigos, criou tribunais e impôs condenações, a Igreja católica desfigurou-se. Perdeu então a beleza simples e tão romântica daquele rabi, algo heterodoxo, que percorria a Galileia libertando, em nome do amor, todos os que gemiam sob o pesado jugo da lei farisaica.
Este Jesus mutilado, pura e simplesmente não existe, nem nunca existiu, excepto nas melodias sentimentais de algumas seitas, nos posters de mau-gosto em que o Nazareno, sorrindo, pisca os olhos aos devotos, e nas prosas poéticas daqueles cristãos piegas que, ao mesmo tempo que pregam, com grandes suspiros, o amor universal, odeiam com quantas forças têm a Igreja e quantos não partilham a sua fé cor-de-rosa.
É verdade que a boa nova de Jesus é a caridade. O seu amor não é lírico, sendo de uma exigência que requer uma abnegação total, até à morte se necessário for (Mt 16, 24-26). Cristo disse que não tinha vindo abolir a lei, mas cumpri-la integralmente, porque “aquele que violar um destes mandamentos, mesmo dos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o mais pequeno no reino dos Céus” (Mt 5, 17.19). Não só não revogou nenhum preceito da lei, como acrescentou mais um, talvez até o mais difícil: o mandamento novo. Excluiu a possibilidade do divórcio, que Moisés tolerara, e endureceu extraordinariamente a lei penal a que estão obrigados os seus fiéis: “se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar” (Mt 18, 6).
Há quem pense que as regras, dogmas, leis e excomunhões católicas não têm fundamento no Novo Testamento. Mas enganam-se, porque não só Jesus deu esse poder ao primeiro Papa e aos seus sucessores (Mt 16, 19), como ele próprio sentenciou, de certo modo, a primeira excomunhão. De facto, quando Pedro o quis impedir de morrer na cruz, Cristo disse-lhe: “Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens” (Mt 16, 23). A excomunhão, que naquele caso não foi efectiva porque Pedro de imediato se arrependeu, é isto: afastar, ou seja excluir, um fiel da comunhão eclesial.
Também na Igreja primitiva se recorreu a essa prática, embora sempre como último recurso e só depois de esgotados todos os outros meios pastorais. Foi o que São Paulo fez a um cristão de Corinto, que escandalosamente vivia “com a mulher do seu próprio pai” (1Cor 5, 4-5).
Também Santo Ambrósio de Milão, no ano 390, excomungou Teodósio, um dos primeiros imperadores romanos cristãos, por este ter ordenado o massacre de Salónica, como represália pelo assassinato do governador militar dessa cidade. Só depois de Teodósio ter humildemente manifestado o seu arrependimento e feito penitência pública, lhe foi levantada a excomunhão e o imperador, que os ortodoxos veneram como santo, foi readmitido na Igreja. A este propósito, Teodósio diria mais tarde: “Ambrósio fez-me compreender o que deve ser um bispo”.
Será que, quando Jesus anatemizou Pedro, Paulo expulsou da Igreja o fiel incestuoso e Ambrósio excomungou Teodósio, contradisseram o mandamento novo?! De modo nenhum, porque a caridade por vezes exige, mais por via de excepção do que por regra, uma tal determinação: “Deus trata-vos como filhos; e qual é o filho a quem o pai não corrige? Mas, se estais isentos de correcção, da qual todos participam, então sois bastardos e não filhos. (…) Deus corrige-nos para nosso bem, para nos fazer participantes da sua santidade” (Heb 12, 7.10).
O ministério episcopal, do Papa e dos bispos diocesanos, é uma imensa honra mas, sobretudo, um serviço à verdade revelada e à comunhão eclesial. São João Paulo II teve a coragem de condenar as falsas teologias da libertação, de inspiração marxista. Também denunciou os pseudo-teólogos que expunham teorias contrárias à fé da Igreja. Estas suas atitudes provocaram muitos protestos, mas ao santo pontífice interessava-lhe mais defender o seu rebanho, do que o aplauso da opinião pública mundial. Na inauguração do seu pontificado, Bento XVI pediu: “rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o Senhor. Rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho (…). Rezai por mim, para que não fuja, por medo, diante dos lobos”. E, como disse o Papa Francisco, no passado dia 19, na ordenação episcopal de três novos núncios apostólicos, os bispos foram instituídos para as coisas de Deus e “não para os negócios, não para a mundanidade, não para a política”. Ou seja, um pastor que queira agradar a todos e ser politicamente correcto, não cumpre a sua missão.
A Igreja católica do século XXI não precisa de anacrónicos clericalismos, nem de novas inquisições, mas também não pode enveredar por um Cristianismo lírico, mais mundano do que católico. Nestes tempos de contradição, são precisos pastores corajosos que preguem a infinita misericórdia de Deus e defendam a verdade da fé com o apaixonado zelo de São João Paulo II, de Santo Ambrósio, de São Paulo e do próprio Jesus Cristo.