Apesar da rapidez da era digital, da velocidade, de uma comunicação revelada em deslumbramento, há um calendário que reclama o tempo da tradição, da memória. Neste espaço, que é o nosso, de uma cultura com pilares nas narrativas cristãs, reafirma-se por estes dias a morte como valor. Não como mera inevitabilidade, mas como valor.
Não é possível sintetizar numa crónica todas as teorias, pensamentos e abordagens culturais sobre este imenso desconhecido. Fixemo-nos nos textos litúrgicos propostos este ano pela Igreja católica na preparação da Páscoa – passagem – nos quais se recorda o episódio de Lázaro, que, morto há vários dias, regressa à vida por intervenção do mestre. O feito de taumaturgo ofuscará a essencialidade de um texto que requer o cuidado da exegese. O fio condutor tem os contornos de uma relação, a relação entre os dois personagens envolvidos - Jesus e Lázaro -, gerador de compaixão... e de amor.
Na verdade, só conhecemos duas grandes inevitabilidades. Somos finitos, temos um prazo físico. E, entre o nascer e o ocaso, somos relação. Existimos enquanto objetos individuais em relação e dizemo-nos também à medida das relações que estabelecemos. É por aqui, perante as inevitabilidades da existência, nas consequências de um (des)encontro, que se desenrolam as procuras. E não será difícil perceber que a finitude ganha sentido na medida dos enquadramentos relacionais, que hão de desvendar um amor incondicional, desenhando, para lá do hoje, uma eternidade insondável.
Na consciência racional sobrará sempre a dúvida, o engenho da incógnita. “O que mais nos atormenta senão o desconhecido?”(1), questionava Abílio Oliveira, poeta português que na morte encontra inspiração para um olhar interior.
Diante da “abalada definitiva”, o padre Carlos Jorge Vicente, com muita experiência pastoral e, por via desta, habituado a lidar com o drama da morte, fala num “espaço aberto pela ausência física”, que, nos que ficam, será daquele que se ausenta, “transformado num santuário de silêncio e encontro” (2).
Thomás Halik reafirma o dilema deste e de todos os tempos: “Qual é a finalidade de tudo isto?” (3). Para o teólogo, sociólogo e psicólogo checo, esta pergunta vai “para lá do horizonte do mundo tal como o conhecemos e o podemos conhecer, para lá da nossa experiência colectiva e do objeto do nosso conhecimento”, só podendo ser feita “no momento da morte, da partida deste mundo, porque o próprio mundo carece de resposta para a mesma”.
Não se estranhem as manobras da incerteza no domínio da fé cristã. O seguimento de Jesus é também uma construção fundada na fé do invisível e do indizível. “Se eu não o vir, não acredito”, teimava Tomé.
O amor é a única força que pode unificar sem destruir, dizia Teilhard de Chardin. O cosmo-teólogo e cientista sustentava que Deus e o Universo se mantém numa relação de evolução, amorosa, criativa e dinâmica.
Recorde-se, a propósito, o filme de ficção científica Interstellar, passado num futuro em que os recursos alimentares da Terra estão esgotados e a humanidade está em vias de extinção.
Explorando a teoria dos buracos negros que permitiriam o contacto entre diferentes universos, a NASA tenta salvar a humanidade procurando outros planetas onde a vida humana seja possível. A meio do filme, três astronautas têm de optar entre um de dois planetas, de onde anteriores expedições tinham enviado sinais optimistas quanto à possibilidade de se instalarem colónias e garantir a sobrevivência humana. É neste contexto que se desenrola o diálogo entre o astronautas Cooper (Matthew McConaughey), engenheiro, e Amelia (Anne Hathaway), bióloga.
“O amor não é algo que tenhamos inventado, é observável, poderoso, tem de significar alguma coisa”, diz Amelia. “Uma utilidade e uma ligação sociais, criar filhos...”, contrapõe o cético Cooper, logo interrompido por Amelia: “Amamos pessoas que morreram, qual é a utilidade disso? Talvez signifique algo mais, que ainda não podemos compreender. Talvez seja uma prova, um engenho de uma dimensão superior de que ainda não temos consciência. O amor é a única coisa que conseguimos entender e que transcende as dimensões do tempo e do espaço. Talvez devessemos confiar nisso, mesmo sem o compreendermos ainda” (4).
Talvez estejamos a perder demasiado tempo a tentar perceber teoricamente o mistério. A (in)finitude pode até revelar-se num contacto ou na fé de uma passagem, mas há nela uma aparente incondicionalidade, que começa e se completa no espaço e no tempo de um outro. Chamemos-lhe... amor. Assim, pelas palavras de Paulo Coelho, "ame e não pergunte muito" (5).
Sugestões de leitura na circunstância de uma efeméride: Fátima - das visões dos pastorinhos à visão cristã(Esfera dos Livros), de Carlos M. Azevedo; A senhora de Maio (Temas e Debates), de António Marujo e Rui Pedro da Cruz; Fátima, milagre ou construção? (Ideias de Ler), de Patrícia Carvalho; Fátima - lugar sagrado global (Círculo de leitores), de José Eduardo Franco e Bruno Cardoso Reis.
(1) Abílio Oliveira, Olhar Interior, Universitária Poesia, 1999
(2) Pe Carlos Jorge Vicente, Palavra de Deus & palavras de homem, Alcoa, 2014
(3) Thomás Halik, Quero que tu sejas!, Paulinas, 2016
(4) Jonathan e Christopher Nolan, Interstellar, Paramount Pictures/Warner Bros./Legendary Pictures, 2014
(5) Paulo Coelho, A bruxa de Portobello, Pergaminho, 2008.
[©Joaquim Francco | SicNotícias]