O treinador

Crónicas 10 julho 2018  •  Tempo de Leitura: 8

Hoje é o dia em que todos acordámos com a esperança de à noite podermos adormecer aliviados pela certeza de já não haver mais ninguém para resgatar da gruta. Se tudo correr tão bem como até aqui, a equipa e o seu treinador estarão finalmente salvos. Na caverna onde ontem ainda ficaram os últimos reféns do terrível labirinto, confinados à semi-escuridão e à escassez de oxigénio, sem saberem se também eles seriam salvos antes das grandes chuvas, aparentemente não chegou a haver ninguém completamente refém do desânimo.

 

Neste filme, naquele cenário, não havia maus. Todos foram vítimas. Sabemos que Akkapol Chanthawong, o treinador, tem apenas 25 anos e perdeu toda a sua família quando era criança. Segundo lemos nas notícias, Akka tornou-se monge budista e depois treinador de crianças desfavorecidas. Foi certamente graças a esta sua motivação de fundo, bem como à sua atitude, resiliência e boa liderança que a equipa de 12 rapazes se manteve forte e unida durante o tempo em que estiveram completamente sozinhos, dados como perdidos.

 

Este treinador interpela-nos por incontáveis razões. Desde logo pela decisão de voltar a levar os seus rapazes a uma gruta de entrada e permanência desaconselhadas, dois anos depois de lá ter estado com todos eles. Sabia, com certeza, que era um terreno perigosamente alagado e escorregadio, porventura pantanoso, mas talvez a sua ideia fosse promover a superação individual e o espírito de entreajuda da equipa. Talvez. Só ele poderá esclarecer o que tinha em mente quando projectou aquele dia nas rochas.

 

À luz do que sabemos hoje sobre a fibra do treinador, através das suas palavras, quando pediu desculpa aos pais, mas acima de tudo tendo em conta o estado anímico em que foram encontrados todos os rapazes, não é concebível que o seu propósito fosse suicida e, muito menos, que pensasse abandonar a equipa, deixando os jogadores à sua sorte. Neste sentido, e mantendo o registo especulativo, o plano era arriscado mas parecia possível de executar, uma vez que a visita anterior tinha sido bem sucedida e não deixou memórias traumáticas. A opção, que agora parece desconcertante e leviana, podia decorrer dessa mesma lógica de risco testado e controlado. Aceito que sim.

 

Akkapol Chanthawongcomeça por ser um nome impronunciável com o qual não temos qualquer familiaridade, mas ao fim de uma semana de noticiários e nervos, damos connosco a falar de Akka como se o conhecêssemos. Passou rapidamente de vilão a super-herói e percebe-se a transfiguração. Se hoje tudo correr bem, e se os últimos cinco voltarem à superfície, este jovem nunca mais deixará de ser olhado, ouvido e tido em conta como um grande líder.

 

Recuando uma semana atrás, aos dias em que a equipa de futebol permanecia desaparecida e muito poucos acreditavam que os rapazes ainda estivessem vivos, é impossível não reflectir sobre os 9 dias e 9 noites que passaram ao frio, sem luz, sem comida nem água, para além daquela que ameaçava fazer deles uma equipa de náufragos.

 

Impressionam muito as imagens da descoberta daqueles que julgávamos para sempre perdidos. Os vídeos e notícias do resgate por pequenos grupos também nos comovem até às lágrimas, mas aquilo que continua a gerar perplexidade e a mexer connosco é a serenidade e a firmeza com que Akka foi capaz de se manter no seu posto de liderança, gerindo positivamente o seu próprio cansaço, fome e sede, de forma a permanecer vigilante para poder acudir às necessidades básicas de 12 adolescentes que pouco mais são do que crianças. Cada um deles teve certamente os seus pesadelos e terrores ao longo dos 9 dias e 9 noites, mas aparentemente o treinador foi um mestre a transmitir-lhes segurança e a dar-lhes estratégias de sobrevivência.

 

Só quem passou por situações semelhantes poderá eventualmente avaliar o que é estar na pele de todos e cada um dos 13 rapazes presos numa gruta húmida e sombria. Talvez os célebres mineiros chilenos, que em 2010 sobreviveram ao desabamento de terras e estiveram 69 dias em risco de ficarem para sempre soterrados na mina de San José, onde trabalhavam, possam saber qual é a sensação, e o que se faz para conseguir sobreviver física, psicológica, emocional e moralmente a tão grande catástrofe.

 

Não sei se me apavora mais o espaço fechado e sem luz, se a fome e o frio, ou não conseguir dormir perante a ameaça de morte iminente. Sei que tenho idade para ser mãe do treinador tailandês e que todos os anos dou aulas a duas turmas só de rapazes com as mesmas idades dos jogadores tailandeses, mas seria incapaz de manter o sangue-frio, o discernimento e a estratégia que Akka inventou para os primeiros 9 dias. E para os que se seguiram.

 

Entre os 11 e os 16 anos temos tantos medos como audácias, mas sabemos que o primeiro gatilho que pode disparar em situações de perigo radical é o pavor. A paralisia também pode ser uma resposta humana quando a ameaça é terrível. Há e haverá sempre uns mais resilientes que outros, claro, mas o kit individual da coragem pode não disparar automaticamente. Daí, também, a admirável performance deste jovem líder, que soube usar o seu ascendente sobre os  jogadores de forma a neutralizar os medos e a acender em cada um deles a esperança de virem a ser salvos.

 

Assim como a luz apaga as trevas, também Akka encontrou formas de iluminar a realidade interior de cada um, atenuando com toda a certeza os gritos e choros dos seus rapazes, consolando-os individual e colectivamente, dando-lhes ferramentas para se superarem, inventando estratégias constantes para que não gelassem nem se concentrassem demasiado na sua fome e na sua sede. Isto, claro, para não falar da eficácia com que contrariou a inclinação humana ao desânimo, natural em cada uma das 12 crianças que estavam em perigo de vida, tinham saudades dos pais e passaram a viver sem referências do dia ou da noite.

 

Akka sabia, ou percebeu instintivamente naquela caverna gelada e escura, que o antídoto mais subtil e mais poderoso do desânimo é a leveza. E a união.

 

Mesmo sem saber ainda se também ele será resgatado, pois à hora a que escrevo ainda não começaram sequer as derradeiras operações de salvamento dos últimos cinco, presto a minha homenagem a este jovem treinador, a este homem que dificilmente virei a conhecer, mas a quem também eu gostava de abraçar e agradecer pessoalmente por ter salvo a vida dos 12 rapazes muito antes de eles terem sido resgatados e trazidos para a superfície.

Artigos de opinião publicados no Observador

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