O Papa Francisco e o Islão
De 3 a 5 de Fevereiro, decorreu a histórica viagem do Papa Francisco aos Emiratos Árabes Unidos, de que resultou uma declaração conjunta, assinada no dia 4 pelo pontífice romano e pelo Grande Imã de Al-Azhar, Al-Tayyib, que é a personalidade mais importante do Islão sunita, que representa 85% de todos os muçulmanos.
Embora surpreendente, este gesto de Francisco não é absolutamente original. Há oitocentos anos, São Francisco de Assis, de quem o actual Papa tomou o nome, encontrou-se com o Sultão Malik al-Kamil, com o intuito de lograr um bom entendimento entre cristãos e sarracenos, em ordem à reevangelização do norte de África. Com efeito, durante os primeiros séculos da era cristã e até à islamização da zona, os países da África setentrional foram cristãos: dois grandes santos dos primeiros séculos do Cristianismo – São Cipriano de Cartago e Santo Agostinho de Hipona – eram africanos.
Como o Papa Francisco confidenciou, o poverello de Assis foi o grande inspirador deste seu gesto de aproximação ao mundo islâmico: «Pensei tantas vezes em S. Francisco durante esta viagem! Isso ajudou-me a levar o Evangelho e o amor de Jesus Cristo no coração, enquanto decorriam os vários momentos da visita. No meu coração estava o Evangelho de Cristo, a oração do Pai por todos os seus filhos, especialmente os mais pobres, as vítimas das injustiças, das guerras e da miséria».
Também São João Paulo II está especialmente relacionado com este acontecimento histórico, porque foi ao sumo pontífice polaco que se ficaram a dever os encontros inter-religiosos de Assis, organizados para fomentar, precisamente, o empenhamento pela paz de todas as religiões. Como é sabido, há já muitos séculos que o santo nome de Deus não é invocado com intuitos bélicos pelos cristãos, o mesmo não se podendo dizer de outras épocas, nem de outras religiões, nomeadamente a muçulmana. Tanto o autodesignado Estado islâmico, ou Daesh, como os guerrilheiros do grupo Boko Haram, que no Sudão e na Nigéria raptaram dezenas de jovens cristãs, que violaram e obrigaram que se convertessem à sua religião, são expressões dramáticas do terrorismo islâmico. É verdade que algumas autoridades muçulmanas condenaram esses atentados, mas também é certo que nem sempre é satisfatória a sua reprovação desses actos, realizados em nome de Alá e aparentemente legitimados pelo Corão e pela prática guerreira do próprio Maomé.
Se se tiver em conta que a grande maioria dos católicos que, actualmente, são perseguidos o são sobretudo nos países islâmicos – recorde-se, por exemplo, o caso AsiaBibi – é compreensível que a Santa Sé procure estabelecer um bom relacionamento com as nações muçulmanas. Mas uma tal posição não deve ser entendida como renúncia ao mandato apostólico universal, de que Cristo incumbiu a sua Igreja: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for baptizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado” (Mc 16, 15-16; cf. Mt 28, 19-20).
Por esta razão, que fundamenta a actividade missionária da Igreja católica, causou alguma perplexidade a afirmação, subscrita pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã Al-Tayyib, de que “o pluralismo e a diversidade de religião, cor, sexo, raça e língua são expressão de uma sábia vontade divina, com que Deus criou os seres humanos”.
A Igreja católica é, segundo crêem os seus fiéis, a única susceptível de garantir a salvação. Não quer isto dizer que todos os católicos, só pelo facto de o serem, estão salvos, nem que todos os não-católicos, por razão dessa sua condição, estão condenados eternamente. Cristo não só disse que muitos dos que o chamam Senhor, e até fizeram milagres em seu nome, não entrarão no reino dos céus (cf. Mt 7, 21-23); como também que se salvam muitos não católicos (cf. Mt 8, 11-12).
Se nem todos os católicos se salvam e também há não católicos que vão para o céu, que significa o princípio “extra Ecclesiam nulla salus”, ou seja, “fora da Igreja não há salvação”?! “Significa que toda a salvação vem de Cristo […] por meio da Igreja […]. Portanto, não poderiam ser salvos os que, conhecendo a Igreja como fundada por Cristo e necessária à salvação, nela não entrassem e nela não perseverassem. Ao mesmo tempo, graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita” (Catecismo da Igreja Católica, Compêndio, nº 171). Neste sentido também pertencem de algum modo à Igreja aqueles que, não tendo recebido o baptismo, procuram fazer sempre o bem. Pelo contrário, os que, mesmo sendo católicos, vivem de forma contrária à fé cristã, não só não têm garantida a sua salvação como correm o risco de eterna condenação.
Contudo, não é indiferente para a salvação eterna ser ou não católico. Como ensina o Concílio Vaticano II, só a Igreja é “sacramento universal de salvação” (Constituição dogmática Lumen gentium, 48). Ou seja, Deus quer que a humanidade se salve através dos meios espirituais de que dotou a sua Igreja. Mas esta regra também tem excepções: o “nosso Salvador, o qual quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4), pode conceder as graças necessárias à salvação a outros, como os cristãos não-católicos, os não cristãos, os fiéis de outras crenças e até os que não professam nenhuma religião.
Certamente, os católicos são os que têm mais meios de santificação, como também os que frequentam a universidade têm mais hipóteses de serem cultos, ou de recuperarem a saúde os que estiverem hospitalizados. Mas pode haver sábios autodidactas, ou curas obtidas por meios que a ciência desconhece.
Se Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade, por intermédio da Igreja católica, como se pode então afirmar – como faz a declaração conjunta do Papa Francisco e do Grande Imã de Al-Azhar – que a pluralidade das religiões é querida por Deus?!
Tudo o que acontece, acontece porque Deus quer, nem que seja apenas porque o permite. Não é razoável afirmar que Deus positivamente quer o erro, a injustiça, a mentira ou o pecado. O pluralismo religioso é consentido por Deus, na medida em que o Criador quer a liberdade dos homens, sem a qual aliás não se pode dar a sua salvação, mas não no sentido de que Deus positivamente quer todas e cada uma das opções humanas. O pluralismo e diversidade das religiões acontece, pois, por defeito, pois nem todos os homens chegaram ainda ao conhecimento da verdade que salva (cf 1Tm 2, 4).
A Igreja católica, na medida em que é espaço de liberdade, aceita e reconhece as diversas religiões, mas sem renunciar à sua missão de a todos anunciar o Evangelho de Jesus de Nazaré. O propósito de Cristo e, portanto, da sua Igreja, é a comunhão de todos os homens, para que haja “um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16). Mas, como o caminho para a desejada unidade de todos os cristãos, de todos os que crêem em Deus e, por último, de toda a humanidade, só pode ser alcançado por via da liberdade, a Igreja católica, ao contrário de outras crenças, respeita o pluralismo e a diversidade das religiões.