Qual a maior queda? Quando tropeço ao subir as escadas, ou quando estou a descer?
Há alguns anos, depois de ter deixado a minha filha na aula de Ballet, caminhava em direcção ao MacDonalds mais próximo para ter WiFi e poder trabalhar mais um pouco até que a aula acabasse. Passei por um parque de estacionamento e olhando rapidamente para a direita, vi um cão dentro de um prédio, mas não sabia se iria sair ou teria acabado de entrar. Desde miúdo que tenho medo de cães, mas na fase adulta ultrapassei em grande parte esse receio. Porém, naquele dia, o medo voltou. Passados alguns instantes percebi que o cão estaria a sair. Apenas ouvi o seu ladrar e comecei a andar muito depressa em direcção à escadaria que me levaria até ao MacDonalds. Desci, apressadamente, um degrau, depois de dois de uma vez, três, cinco e salto mais degraus do que seria suposto. Caio fortemente sobre os meus calcanhares, um tecido mole e sem qualquer preparação para essa queda. A dor é aguda e as lágrimas de dor escorrem-me pela cara. Tenho dificuldade em andar, a minha esposa estava a trabalhar a 200 km de distância, e ainda precisava de ir buscar a minha filha ao Ballet. E se mal conseguia andar, quanto mais conduzir. Fui salvo pelos amigos a quem telefonei, mas fiz uma experiência concreta do resultado da pressa numa descida.
As descidas parecem mais fáceis depois do esforço que empregámos até chegar ao cume. E a gravidade é uma força que impulsiona a descida porque tem o mesmo sentido e direcção. Mas, talvez, a própria palavra — “gravidade” — seja um sinal da gravidade da situação quando nos descuidamos nas descidas pela pressa. Depois do Verão, será isto que está a acontecer com a reacção a esta pandemia?
Queremos voltar à normalidade de uma vida feita de encontros, saídas, sem preocupações e máscaras. Queremos ou apetece-nos? Uma vez ouvi que apenas queremos o que nos faz bem. Tudo o resto faz parte do nosso apetite. Os sinais dos tempos mostraram a nossa fragilidade, e isso é bom. Pois, o reconhecimento e contacto com as nossas limitações humanas é o primeiro passo para sabermos lidar com as mesmas.
Tommy Caldwell é um dos maiores alpinistas dos últimos tempos. A sua especialidade é a escalada livre onde cada pitch ,ou passo entre dois pontos de uma parede grande, é feito sem o auxílio de material para ajudar na subida. Exige uma preparação física e mental elevadas, e a mais pequena saliência na rocha é suficiente para poder subir. A sua carreira estava em ascensão quando numa obra de marcenaria em casa comete um erro, e uma serra corta-lhe o dedo indicador da mão esquerda. Os médicos diziam-lhe para pensar numa nova carreira, mas ele não desistiu. Com menos um dedo, adaptou a sua técnica e tornou-se numa fonte de inspiração de quem faz dos seus limites, possibilidades. O ethos do alpinista vê em cada dificuldade uma oportunidade de evoluir.
Em muitos países da Europa emerge a segunda onda de novos casos de coronavirus e muitos sentem a necessidade de sair de casa. Vive-se um paradoxo interior entre um “já chega” e um “ainda não.” A segunda onda é um sinal de alerta para nos mantermos concentrados, re-inventando o modo de ser e estar. É uma onda que representa a descida de uma montanha onde tantos perdem mais a sua vida do que na subida. Prevenir custa, depois de tanto tempo confinados, mas o esforço dá espaço e tempo para que os cientistas possam avançar numa vacina que nos ajude a equilibrar a balança no combate a este virus. Todos sabemos disto, mas é ainda difícil aceitar a prudência na descida.
No ethos do alpinista tenho assistido que se deve dar cada passo, não importa se grande ou pequeno, como se a nossa vida depende disso. Posso aplicar este ethos a coisas grandes, ou até à pequenas.
Felizmente, não tinha partido nenhum osso na queda que dei. Mas experimentem andar sem os vossos calcanhares. É muito difícil. Nos primeiros dias de recuperação parecia uma pessoa de idade muito, muito avançada, a andar. A pressa na descida havia-se convertido na maior lentidão. Por isso, vale a pena lidar com prudência na descida que representa a entrada no novo ano lectivo. Caso contrário, podemos cair e a recuperação ser ainda mais lenta, com graves consequências para os mais frágeis. Cuidar bem da descida é a sabedoria que nos ajudará a crescer neste momento civilizacional.