Toque

Crónicas 1 outubro 2020  •  Tempo de Leitura: 5
A sensibilidade ao toque é diferente. Antes colocava a mão em qualquer manípulo, fosse do elevador, ou das portas de entrada no prédio. Antes carregava em qualquer interruptor de luz. Não me importava de tocar na mão do outro, na sua cara. Mas a pandemia veio alterar cada toque.

E se o coronavirus está onde toquei? A questão faz sobressair o medo, alastrando não só uma pandemia física, mas, sobretudo, psicológica. Será que tenho razões para recear ser contaminado pelo toque? De facto, o risco existe. Ou seja, se tocar numa superfície contaminada e levar a minha mão ao nariz, ou à boca, posso ficar contagiado. Daí as recomendações de lavar frequentemente as mãos e o uso de álcool-gel, embora também se saiba que o toque não é o modo preferencial de propagação do coronavírus SARS-CoV-2.

Penso nisto pela alteração dos rituais desde março de 2020. Uso a ponta de uma chave para abrir a porta do elevador à entrada, o pé suavemente afasta a porta à saída. Se estou a sair pela frente do prédio uso o joelho pela abrir o trinco e uma fivela para puxar a porta no manípulo, abrindo-a. 

Uso as costas para abrir certas portas, deixámos de cumprimentar com as mãos e passámos a andar “às cotoveladas” (o risco de levar o cotovelo à boca ou nariz é mínimo, a não que sejamos contorcionistas). E de cada vez que toco com as mãos em alguma coisa, e não tenho meio de as desinfectar, ando preocupado com as possíveis comichões na cara e não poder coçar. 

Ridículo. Admito. Será?

Alguns estudos mostraram que uma série de vírus, incluindo os coronavirus, podem espalhar-se através do toque em superfícies, como aconteceu no passado em infantários, escritórios e hospitais. 

O modo como isso acontece tem muito a ver com parte do meu trabalho de investigação em impacto de gotas em superfícies. Isto é, quando as pessoas tossem, espirram, ou falam com muitos perdigotos, emitem gotas para o ambiente. Se essas gotas vão de encontro de uma superfície podem depositar-se e pareceque o coronavirus consegue sobreviver até três dias em metais e plásticos. 

E se o toque acontece numa superfície infectada? O virus não se vê. O receio não é só pela minha saúde, mas também pela saúde daqueles que poderei infectar. É o dilema gerado pela pandemia do medo que alguns referem como mais perigosa do que qualquer pandemia biológica. Estou de acordo. E?

O ser humano, tu e eu, possuímos a capacidade de nos adaptarmos às situações que temos diante de nós. Por isso, qualquer hábito pode ser quebrado com outros hábitos de cada vez que se alteram as circunstâncias. Porém, vale a pena aprender com a situação que estamos a viver.

Se o toque é motivo de contágio, significa que a carga emocional de um “quero-te bem”, “estou contigo nessa situação”, e até o próprio calor de um toque, mostra como somos profundamente relacionais. Quando os toques se tornam banais deixamos de lhes dar importância. Agora temos uma oportunidade valorizar mais e melhor cada toque.

Mas há quem não goste de ser tocado, ou de que toquem naquilo que irá tocar. Recordo-me do modo como caracterizaram o inventor Nicola Tesla, num recente filme, mostrando como ele gastava um guardanapo de pano para limpar cada peça de louça numa sua refeição. Só a ele estaria reservado o toque no copo, prato ou talher. 

Havia pessoas que possuíam a paranóia de estar sempre a lavar as mãos. E agora? Todos o fazemos. Seremos paranóicos? Seria exagero pensá-lo. Talvez seja o resultado daquilo que um toque significa para quem deseja que a sua seja uma vida plena.

O toque é o sinal visível de que tudo no mundo está ligado. Um toque pode dar início a uma narrativa impensada com um desfecho imprevisível. Se ao menos interiorizássemos o quanto podemos tocar por amor, cada toque tornar-se-ia especial. 

O Rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava, mas também ele tinha medo do toque porque nem tudo o que tocamos pode gerar a transformação que nos dá profundidade. Antes, cada toque ocorria como mais uma banalidade. Mas depois da pandemia, cada toque é pensado, e cuidado. Deixámos de tocar em vão.

O toque convida a nos abandonarmos à narrativa da história; a aderir à Vontade de Deus; a abraçar a oportunidade escondida na incerteza; a deixarmo-nos transformar, em vez de estarmos sempre a transformar; e a confiar que o futuro nada é, enquanto não se fizer presente.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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