O dom da surpresa
1. Penso, muitas vezes, que aquela que é uma das dimensões mais exigentes do ministério sacerdotal é, simultaneamente, uma das suas dimensões mais belas. Refiro-me àquilo que, num olhar meramente humano, se poderia designar de “instabilidade” – inerente ao sim dado no dia da ordenação. Na verdade, quando disse sim ao chamamento de Deus, disse que sabia bem o que queria ou Quem queria (o próprio Deus), mas, ao mesmo tempo, disse outra coisa nada menos relevante: que o modo como iria concretizar esse sim não estava nem nunca estaria nas minhas mãos, mas nas mãos dos meus “superiores” e, acima de tudo, nas mãos do Superior que é o próprio Deus. E assim tem acontecido. Sendo padre há pouco mais de cinco anos, já desenvolvi o meu ministério em lugares e âmbitos muito diferentes e pude conhecer pessoas igualmente diversas.
2. Alguns perguntam-me: Mas isso não é exigente? Não tem planos para a vida? Não gostaria de saber com aquilo que conta? Às vezes – confesso –, já caí na tentação de “planear” demasiado algumas coisas ou partes da minha vida. E é quase sempre nessas horas que lá vem – e ainda bem – o Senhor “estragar os planos” e recordar-me, como escreveu D. António Couto, que “o Deus de Jesus Cristo não é tanto um Deus de planos, mas de surpresas”. E concluo, então, que é nesta aparente instabilidade que reside a beleza do sacerdócio. Uma beleza exigente, como comecei por referir, porque aquilo que é verdadeiramente belo é sempre exigente. Mas, acima de tudo, uma beleza que é sinónimo de liberdade. Sem muitos planos, mas com o único objetivo de seguir Jesus como, quando e onde Ele quiser, tornamo-nos radicalmente livres e aprendemos a arte de acordar diariamente abertos às surpresas de Deus e de nos descobrirmos tocados pela sua graça como e quando não contávamos!
3. Escrevo e partilho estas linhas, convicto de que embora isto que digo se realize, de um modo muito especial, na vida de um sacerdote ou de um(a) consagrado(a), pode servir de horizonte para a vida de qualquer cristão, mormente nos momentos em que os “planos” de Deus não coincidem aparente ou efetivamente com os nossos. Tantas vezes, nos habituamos a fazer demasiados planos concretos e meticulosos, mais do que em definir princípios ou projeto(s) de vida. Tantas vezes, não sabemos bem qual é a meta para a qual caminhamos, mas queremos, a todo o custo, construir caminhos. Tantas vezes, nas nossas perguntas e respostas, o “como” se sobrepõe ao “porquê” ou ao “quem”.
4. Como importa, por isso, reaprender a descobrir o dom da surpresa de Deus. E nisso creio que o tempo presente pode ser “favorável”. Coloco “favorável” entre aspas, porque confesso que tenho dificuldade em ver neste um tempo bom e, ainda mais, em embarcar em discursos teológicos que ousam ver a pandemia como “dom de Deus”. Mas como, não raras vezes, afirmou D. Anacleto Oliveira, este tempo é duro e tudo devemos fazer para o ultrapassar o mais rapidamente possível. Mas acrescentava: “já que temos de passar por ele, façamos com que seja também tempo de aprendizagem, esforçando-nos por continuar a viver”.
5. Este tempo pode, por conseguinte, ser interpelação a sermos, à imagem de Deus, não apenas homens e mulheres de planos, mas muito mais homens e mulheres abertos à surpresa de Deus que surge onde e quando menos esperamos. Se vivermos demasiado presos aos nossos planos, mais tarde ou mais cedo sentir-nos-emos desiludidos. Se acreditarmos, de verdade, que a nossa vida está entregue aos “planos” e, sobretudo, às surpresas de Deus, sentir-nos-emos mais livres e mais dispostos a ver a vida como dom. De facto, se nos limitarmos a planear, todos os dias encontraremos motivos para nos lamentarmos e desistirmos. Se nos abrirmos à surpresa de Deus, sem nunca nos esquecermos de fazer a nossa parte e de saber por que razão e para quem queremos rumar, até a flor que desabrocha no cantinho mais discreto das nossas ruas de todos os dias nos fará sorrir. Se assim não for, por mais belas e variadas que sejam as flores, fixar-nos-emos sempre na ferrugem do canteiro.
[Pe. Renato Oliveira]