Individualidade

Crónicas 17 junho 2021  •  Tempo de Leitura: 5
O individualismo é o vírus moral que tem ajudado a manter esta situação de pandemia. Diversos investigadores perceberam que os países com pessoas mais individualistas tendem a acumular mais casos e mortes de Covid-19; um grupo de investigadores do Reino Unido chegou mesmo a perceber que as pessoas individualistas praticam menos o distanciamento social do que as que vivem mais comunitariamente; e, por fim, uma colaboração entre investigadores americanos e chineses concluiu que os grupos de pessoas que dão mais prioridade à colectividade tendem a usar mais a máscara do que as pessoas individualistas.

 
Cada ser humano é digno, possui uma personalidade própria, tem uma opinião sobre o que se passa à sua volta e ninguém discute o valor da sua individualidade. Mas todos nos reconhecemos como pessoas no relacionamento com os outros, pelo que será na colectividade que encontramos o verdadeiro valor da individualidade. Nesse sentido, quando centramos os nossos actos apenas naquilo que queremos e pensamos saber, resulta num voltar-se para si próprio que se converte em individualismo. E nesta fase da história humana, se quisermos tirar lições de vida a partir desta pandemia, talvez a mais importante seja a de que fazemos parte de uma colectividade. Se quisermos salvar vidas humanas, não podemos ser individualistas.

 
Tenho visto muitos ajuntamentos de pessoas, sem máscara, e o número de casos de Covid-19 aumenta. Uma linha de pensamento entra pela sociedade adentro com as ideias típicas do individualismo perfumado — «faz bem a ti próprio», «dá um presente a ti próprio», «pensa em ti» — e quem sofre, mais susceptível está a tornar-se individualista. Uma outra linha de pensamento que entra pela sociedade desde há muito é a de nos considerarmos como autoridade sobre determinados assuntos, mesmo que tenhamos competências técnicas para isso e contra mim falo. Sendo especialista na área dos sprays onde se enquadram os aerossóis, o maior veículo de propagação desta doença, em ruas bem ventiladas não costumo usar máscara e “sei” que isso não tem problema — «eu é que sei», «não me venham impor coisas quando conheço a ciência». Reflectindo sobre esta atitude com a minha esposa, percebi que não interessa aquilo que eu sei, mas o testemunho que posso dar aos outros de que lhes quero bem, fazendo coisas desnecessárias, mas por amor.

 
O impacte que tem uma atitude pessoal é global. A cultura humana floresceu graças à nossa capacidade de comunicar e fazer família. Se o ser humano primitivo tivesse pensado apenas em si, não teríamos sobrevivido. É preciso recuperar a individualidade na colectividade e começar a erradicar o individualismo se quisermos superar a situação que vivemos mais rapidamente.

 
A nossa individualidade é afectada pelos relacionamentos que estabelecemos na comunidade em que vivemos, crescemos e evoluímos. Podemos viver, crescer e evoluir isolados dos outros, mas não seríamos os mesmos, ou — atrevo-me a dizer — totalmente humanos. O curioso do individualismo é tornar-nos pessoas isoladas no meio das outras pessoas, de tal modo que a consequência dos nossos actos, somente a pensar em nós próprios, acaba por afectar (e bem) a vida daqueles que estão ao nosso redor. É o comportamento de um vírus.

 
Os vírus evolvem rapidamente quando infectam um corpo, podendo ser discretos no seu modo de agir, versáteis, mas fatais, e cruelmente simples quando comparados com outras entidades biológicas. Micro-seres capazes de realizar macro-estragos. O objectivo de um vírus é fazer mais vírus iguais a si próprios. E se a carga viral for suficiente, infecta um organismo muito maior do que ele próprio, podendo mesmo ser fatal, o que é paradoxal. Pois, ao matar o organismo, deixa de poder reproduzir-se e morre. Ou seja, os vírus têm um modo de ser e estar suicida. O individualismo está para um vírus como a comunidade está para o organismo. A individualidade descoberta na relacionalidade pode ser o antídoto.

 
Pedir-me para usar máscara numa rua ventosa só porque está cheia de pessoas (e eu achar que não há problema) leva-me a sair de mim mesmo e a abdicar daquilo que penso. Há quem sinta que ceder ao que considera desnecessário (mesmo que não lhe faça mal) é ceder à sua individualidade, mas engana-se. Está a ceder ao vírus do individualismo.

 
Só por amor podemos ceder o que é possível ceder, quando não compreendemos por cedemos. O amor convida-nos a darmos um pouco da nossa individualidade para construir a colectividade. E a colectividade é um caminho de sobrevivência cultural e social que pode ser sinal de que não há melhor antídoto para a divisão do individualismo do que o encontro de individualidades.

 
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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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