Desordem
Na capela de S. Miguel da Reitoria da Universidade de Coimbra, o D. Armando, bispo auxiliar do Porto, convidou-nos a rezar juntos a oração pelo “Caminho Sinodal”. A um dado momento dizemos — «Nós somos débeis e pecadores: não permitais que sejamos causadores de desordem» — Parei por instantes porque me lembrei de que à desordem associamos a ideia de entropia e questionei-me como poderia esse conceito relacionar-se com este caminho sinodal que queremos percorrer juntos.
Numa aula prática de mecânica aplicada começámos todos a falar ao mesmo tempo e estávamos a perturbar o professor que se vira para nós e diz — «vá lá, baixem a entropia...»Subjacente a este pedido está uma relação directa entre entropia e desordem, uma ideia que provém do trabalho criativo de Ludwig Boltzmann, um físico austríaco que se suicidou (com muita pena para todo o mundo) aos 56 anos. Na altura, ele pretendia saber qual o número de estados possíveis para as moléculas de água num chá a arrefecer, e verificou que este estado de desordem é proporcional ao logaritmo do número de estados possíveis. Porém, o “logaritmo” pode ser uma palavra estranha, remota, ou a evitar para muitas pessoas. Por isso, penso que somente depois do (também) criativo trabalho de Claude Shannon em teoria de informação é que podemos entender melhor o que significa esta “desordem”.
Na oração, ser causador de desordem significa perturbar o nosso caminho de união com Deus e afastar as pessoas da busca ou desejo de uma vida plena. Nada disso é totalmente ordenado porque nos nossos limites encontram-se as grandes oportunidades para amadurecermos. Mas também não é totalmente ordenado, senão cristalizaríamos os nossos pensamentos e comportamentos fechando o espaço a evoluir como pessoas e a deixarmos que os outros possam fazer caminho connosco. A realidade não depende de mim, mas da interacção contigo e com todos os que se cruzam no nosso caminho. Quanto mais informação trocarmos no cruzamento de caminhos, maior o número de mal-entendidos possíveis e, consequentemente, desordem. Contudo, talvez valha a pena ter uma noção daquilo que significa “informação” como elemento básico daquilo que estrutura fisicamente o nosso universo, de modo a compreendermos melhor o que quer dizer ser causador de desordem.
A noção mais comum que temos de “informação” é a de notícias que ouvimos, mas é mais fundamental do que isso. Quando ouvimos uma notícia que desperta a nossa atenção, significa que não estávamos à espera de a ouvir ou que determinada coisa acontecesse. Ora, isso é “informação”: algo proporcional ao grau de surpresa. Porém, existe uma nuance mais subtil. O nosso grau de surpresa advém de haverem várias alternativas possíveis para um determinado evento. E quanto maior o número de alternativas, maior o grau de surpresa, maior o valor que uma dada informação tem no nosso conhecimento das coisas e, propocionalmente, maior a propensão para a desordem. Pois, quem não sente as ideias a desordenar quando quer escolher um tipo de cereais e tem 10 alternativas por onde escolher? O que fazer? Talvez ir mais a fundo na noção de “informação” sirva de ajuda.
Quando olhamos para uma flor ou pintura, o que vemos deve-se à luz que chega aos nossos olhos. Na prática, a luz transporta a informação desde a flor ou pintura até nós. Por isso, se não houvesse transporte de informação facilitado pela luz, nada saberíamos da flor ou pintura. Logo, a informação, além de ser propocional ao grau de surpresa, ou ao número de alternativas possíveis, é também uma medida da possibildade dos sistemas (flor/pintura e nós) comunicarem entre si. Quando Shannon descobriu como quantificar a “informação”, verificou que a relação era semelhante à de Boltzmann para a entropia. Por isso, “máxima-entropia”/desordem ocorre diante do maior grau de surpresa, ou seja, informação.
Desordem do ponto de vista da teoria da informação é gerar a maior rede possível de informação recíproca que comunicamos entre nós, criando várias versões da narrativa relacional que flui pela história do mundo. Ser causador de desordem é contribuir para a cacofonia da comunicação com todas as pessoas a falar ao mesmo tempo. De certa forma, a fluência com que é possível comunicar, hoje, facilita esta cacofonia e pode não ajudar neste processo sinodal. Ajuda se aprendermos a escutar e falar quando chegar a nossa vez.
Escutar implica diminuir dentro de mim o número de interpretações alternativas daquilo que o outro está a dizer, o que acontece quando coloco filtro em vez que estar atento ao outro. Esse diminuir pratica-se não tendo pensamentos, fazendo um autêntico vazio e concentrando-me bem nas palavras que o outro me oferece.
Falar implica não esconder dos outros aquilo que penso e que pode oferecer uma alternativa que evita a cristalização e uniformidade de pensamento. A homogeneidade de experiências e toda a gente a dizer que sim uns aos outros, retira espaço à acção criativa de Deus. Neste sentido, talvez a frase naquela oração pudesse ser também — «não permitais que sejamos causadores de demasiada ordem» — aquela onde o Espírito Santo encontra o espaço criativo para nos ensinar coisas novas.
Se chegares ao fim deste pensamento e sentires alguma confusão, desordem, não faz mal. A culpa é minha. Ainda estou a aprender a comunicar melhor e quem sabe se um pouco de desordem não desbloqueia a curiosidade adormecida pelo entretenimento fácil.
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