Caná: o milagre que nunca devia ter acontecido
É São João quem relata o primeiro milagre de Jesus de Nazaré. Tendo sido sua mãe convidada para um casamento em Caná da Galileia, bem como ele e alguns dos seus discípulos, faltou o vinho. Maria comunicou esta carência ao seu filho, que disse que não importava, porque não tinha ainda chegado a hora de se manifestar ao mundo. Sua mãe, contudo, não desistiu: logo disse aos empregados de mesa que obedecessem a Cristo. Por sua indicação, encheram com água uns grandes recipientes e resultou depois que os mesmos estavam, na realidade, repletos de bom vinho (Jo 2, 1-11).
Os outros evangelistas – Mateus, Marcos e Lucas – não referem este acontecimento e a razão é óbvia: este milagre, pura e simplesmente, nunca devia ter acontecido! Ou, tendo-se realizado, deveria ter sido silenciado! Com efeito, este facto pouco ou nada abona a favor de Cristo, por mais que João diga, em jeito de happy end, que foi graças a este prodígio que os seus discípulos acreditaram nele (Jo 2, 11).
Uma primeira objecção deve ser feita à presença de Jesus e dos discípulos naquele banquete. Se os fariseus e João Baptista jejuavam, o mesmo era de esperar de Jesus: a sua participação naquela festa não condiz com a sua condição de mestre espiritual. Não consta que tenha pregado lá, nem feito nenhuma cura, pelo que a sua presença foi, na realidade, desnecessária, senão mesmo fútil. Decerto, não só ele como também os seus seguidores foram, para os fariseus, motivo de escândalo: em vez de se comportarem como uma santa milícia de ascetas, em demanda dos árduos caminhos da salvação, agiram como um grupo de amigos na pândega, a gozar os prazeres da vida!
Aliás, não foi caso único, porque Jesus ia a festas que, não só não eram religiosas, como nelas abundavam os publicanos e os pecadores que, segundo o Evangelho, são os melhores compinchas para a diversão! (O que explica a sua ida para o Céu, onde se dispensa a presença dos chatos e dos ‘beatos’ …). À custa destas más companhias, Cristo não só ganhou a fama de glutão e bebedor (Mt 11, 19), como também provocou o muito puritano escândalo dos fariseus de então e de agora.
Também não se percebe por que razão Maria se intrometeu numa questão que não lhe dizia respeito, não sendo ela mãe de nenhum dos noivos, nem a anfitriã. Diga-se, de passagem, que é de má nota que alguém, faltando o vinho na casa onde é convidado, trate de o arranjar e, pior ainda, o consiga até de melhor qualidade do que o que antes se tinha servido! A advertência de Maria também pecava por moralmente inconveniente: o vinho não era essencial e a sua ausência era mais proveitosa do que prejudicial.
De facto, o milagre religiosamente correcto era o contrário: em vez de converter a água em vinho, transformar o vinho em água! Com efeito, está provado que o excesso de água, excepto no caso dos náufragos, é muito menos pernicioso do que o do vinho. Portanto, o que se esperava de um santo homem de Deus era o milagre inverso: como o fruto da videira, embora produza uma momentânea euforia, é muito nocivo para quem o consome de forma destemperada – como já aconteceu com Noé, a quem a Bíblia atribui a sua invenção – Jesus deveria ter mudado o vinho em água. Naquele caso, vinha até muito a propósito, uma vez que se tratava, precisamente, de um copo-de-água!
O milagre também não se justificava em relação aos apóstolos. É verdade que neles aumentou a fé em Cristo, mas talvez também a ilusão de que poder-se-iam entregar a uma vida ociosa, uma vez que, por virtude daquela extraordinária capacidade do mestre, estavam garantidas todas as suas necessidades: graças a Jesus, não teriam que ganhar a vida com o suor do seu rosto. Mais do que um exército de laboriosos operários da vinha, poder-se-iam converter num conjunto de ociosos parasitas que, à conta desse poder milagroso, se entregassem a uma vida de prazeres. Pior ainda: por via da produção industrial e posterior comercialização daquele excelente vinho, os apóstolos poderiam sucumbir à tentação de trocar a sua missão espiritual por aquele muito mais rentável negócio que, certamente, nenhum judeu digno deste nome desprezaria.
Um último reparo a este primeiro e tão desastroso milagre de Cristo: a viagem de ida e volta de Caná da Galileia foi demorada, bem como a cerimónia religiosa do casamento e o posterior banquete. Também a operação que antecedeu o milagre foi trabalhosa: foi preciso encher de água seis grandes talhas de pedra, cada uma com capacidade para uns cem litros. Só depois o seu conteúdo foi levado ao chefe de mesa, que foi quem provou o bom vinho, felicitando o noivo pela excelente zurrapa. Pergunta-se: mas Jesus não tinha nada mais importante para fazer?! Será que o filho de Deus veio ao mundo para fazer de taberneiro?! Porque não empregou esse tão precioso tempo a curar doentes, a consolar aflitos, a ressuscitar mortos, a pregar a palavra de Deus, a resolver conflitos, a alimentar pobres, a ensinar ignorantes, a perdoar pecados, ou a realizar outras obras de misericórdia?!
Mais do que o esplendor da divindade de Cristo, aos fariseus de todos os tempos exaspera a amabilíssima humanidade de Jesus! Mais do que os rigores da penitência mais exigente ou do dogma mais incompreensível, irrita-os a imensa alegria de viver de Jesus e dos cristãos! Por isso, eram tão azedas e ressabiadas as suas críticas ao nazareno, como agora são as que os novos fariseus fazem aos seus discípulos. Eram capazes de perdoar a Cristo as suas ousadias doutrinais, mas não lhe podiam desculpar aquela tão pura e intensa felicidade, que é, afinal, a grande novidade cristã!
Os fariseus de ontem e de hoje não sabem que a vida é uma festa, porque ignoram a alegria do amor de Deus, a que se acede pelo arrependimento e pelo perdão. São uns tristes, porque não sabem que Deus é amor (1Jo 4, 8), nem que o Pai do céu “não enviou o seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 17). Jesus não veio à terra para complicar a existência humana com uma infinidade de preceitos e proibições, mas para conceder aos seus fiéis a “liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8, 21) e o dom da vida na abundância (Jo 10, 10).
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