Dia Pleno
«Ptk descobriu que estava prestes a perder a capacidade de apreender a realidade.» — Assim começa um conto escrito por Tor Bringsvaerd em 1973. De quanto tempo dispomos num dia?
A resposta a esta pergunta sugere na mente de cada pessoa o ciclo natural de rotação planetária de 24h. Porém, em 1962, o explorador francês Michel Siffre viveu durante dois meses numa gruta e das várias experiências que queria fazer, a mais extraordinária foi a alteração da percepção do tempo e de cada dia que não era feitos de ciclos naturais de 24h, mas de 48h. Ou seja, Siffre levanta o véu da realidade do ser humano ser feito para um planeta com uma rotação mais lenta.
Inspirado por esta história que Siffre repetiria em 1972, Ptk queria orientar-se melhor pela realidade e começou por comprar todos os jornais do dia 18 de Agosto de 1973. Lia cada página, cada coluna e, por fim, quando sentiu que tinha apreendido alguma coisa sobre a realidade daquele dia, deu-se conta de que era já 21 de Agosto e a realidade era outra, tendo mudado pelo menos três vezes. A quantidade de informação era imensa para uma só pessoa e o desespero aumentava com o passar de cada dia. Como poderia ele contactar a realidade se nem as 24h chegavam para compreender tudo o que estava a acontecer num dia. Foi nesse momento que Ptk tomou uma decisão: estudar bem um dia só e escolheu o dia 1 de Setembro de 1973.
Ptk começou por comprar todos os jornais nacionais e regionais daquele dia, organizando os vários temas e cedo o seu quarto se tornou num laboratório do dia 1 de Setembro de 1973. Depois da informação Norueguesa foi a vez da Dinamarquesa e da Sueca. A sua casa começou a encher-se de diagramas e ligações para compreender bem a realidade de 1 de Setembro de 1973. Esgotada a informação na Escandinávia, comprou jornais de outros países. Aprendeu novas línguas. Lidar com os amigos e familiares tornava-se difícil porque nas conversas que tinha eles, Ptk percebia quão pouco sabiam sobre o dia 1 de Setembro de 1973. Quase 10 anos depois de se ter embrenhado por aquele dia, Ptk sabia mais ou menos vinte línguas diferente e dialectos e o que aprendia sobre aquele dia parecia ser uma fonte inesgotável de conhecimento. Quem imaginaria tal coisa? Ptk sentia-se um homem de sorte porque de todos os dias que poderia ter escolhido, a opção pelo dia 1 de Setembro de 1973 era única e deslumbrante. O seu laboratório expandiu-se a pouco mais de 375 metros quadrados de paredes na sua casa cheias de acontecimentos daquele dia. Um dia cheio, mas pleno? Em fevereiro de 1983, um fogo devorou tudo o que tinha acumulado sobre aquele dia durante 10 anos.
Gravemente queimado, Ptk passou os dois anos de vida que lhe restaram no hospital a recordar tudo o que sabia sobre o dia 1 de Setembro de 1973. Terá desperdiçado a sua vida com a fixação pelo conhecimento da realidade usando um dia apenas? A imaginação de Tor Bringsvaerd quando li este conto de ficção, num tempo em que a informação produzida por dia é incomensurável, é minimamente intrigante. A conclusão que tirava depois de ler a história imaginada de Ptk seria a da impossibilidade de sabermos tudo o que se passa, mesmo que tenhamos acesso completo e gratuito a essa informação. É preciso muito tempo para realmente compreender a realidade de tudo o que se passa no mundo. Como cada dia é tão cheio de história entrelaçadas numa complexa rede de relações, não será o consumo de informação sobre esse que torna cada dia num dia pleno.
O dia pleno é aquele que vivemos a contactar com a realidade através daquilo que é essencial. O desafio será sempre distinguir o que é essencial daquilo que é supérfluo. Creio que todos os que sentem não ter tempo para apreender a realidade por mais informação que consumam, vivem mais daquilo que é supérfluo do que gostariam. Escrevia Saint-Exupéry no diálogo entre o Principezinho e a Raposa que o essencial é invisível aos olhos. Por isso, contactar com a realidade através daquilo que é essencial para que cada dia se torne pleno, tem mais a ver com a vida interior que não se vê, do que com tudo aquilo que à nossa volta acontece e se vê. O que é essencial será o que transforma a nossa vida interior de tal modo que nos faz esboçar um sorriso diante da mais cruel adversidade.
Talvez eu tenha sido injusto com Ptk e ele tenha vivido, apesar de tudo, um dia pleno. Pois, no hospital, quando a imagem do dia 1 de Setembro de 1973 vagarosamente crescia na sua mente, nomes e números derretiam-se em mapas e diagramas imaginários e no meio da clareza que emergia da maior dor, Ptk sorriu.
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