Um homem, um gesto

Notícias 23 agosto 2017  •  Tempo de Leitura: 9

Todos os dias há más notícias e é impossível viver sem nos interrogarmos. Muitas dúvidas e inquietações ficam sem resposta e a angústia cresce, daninha, de dia para dia. O sentimento de vulnerabilidade aumenta exponencialmente e a sensação de impotência perante certos acontecimentos também se agrava. Sejam as catástrofes naturais, os fogos pavorosos, os acidentes, os assaltos ou as atrocidades cometidas por terroristas, tudo nos sobressalta e enche de fobias ou inseguranças. E se é assim com a esmagadora maioria dos adultos conscientes, que dizer das crianças, ainda sem consciência formada e sem a noção dos limites?

 

Mesmo sem sabermos exactamente como orientar as novas gerações, é importante ter muito presente que a influência imediata do comportamento é sempre mais eficaz do que as palavras, como escreveu Viktor E. Frankl, no seu livro O Homem em Busca de um Sentido. O exemplo certo é sempre mais eficaz do que as palavras alguma vez podem ser, mas não nos podemos esquecer que o mesmo acontece com o exemplo errado. O bem e o mal são igualmente contagiantes, ainda que o bem seja incrivelmente mais luminoso. A perversidade humana não tem fronteiras nem prazos, mas a bondade também não.

 

Todos os dias há más notícias, é um facto, mas todos os dias há pelo menos um caso, um exemplo, um testemunho, uma informação (nem que seja de rodapé) ou um vídeo de alguém a fazer alguma coisa extraordinária. O exemplo que estas pessoas dão marca-nos e inspira-nos sempre, para sempre. Aconteceu em todos os tempos, em todas as guerras e acidentes naturais ou provocados, aconteceu em Auschwitz e continua a acontecer agora, neste holocausto contemporâneo que é o terrorismo global. Haverá sempre alguém capaz de nos resgatar e de elevar o nosso olhar acima dos acontecimentos. Algum herói comum capaz de nos devolver a esperança e a capacidade de acreditar que o mundo é um lugar possível.

 

Desta vez, e para além das autoridades e especialistas no terreno que agem com muito nervo e notável heroicidade, foi Fernando Álvarez, o nadador espanhol que pediu à organização do Mundial de Masters de Budapeste, competição em que estava a participar, para que fosse feito um minuto de silêncio em homenagem às vítimas dos atentados no seu país. A organização recusou liminarmente dizendo que “não se pode perder um minuto”, mas ele provou que sim. Mais, provou que não só se pode perder um minuto por uma causa nobre e solidária, como também se pode perder uma competição inteira por razões maiores.

 

Fernando Álvarez fez sozinho o seu minuto de silêncio na prancha, antes de se atirar para a água, e perdeu aquela competição desportiva, mas humanamente ganhou em toda a linha. Ele e nós. Ganhamos com o seu exemplo em coragem para fazermos a diferença, em liberdade interior para agirmos em contra-corrente, em segurança para não desistirmos, em confiança para não nos deixarmos abater, em discernimento para não trocarmos as prioridades, e em atenção para nunca nos fazermos indiferentes. Acima de tudo ganhamos em consciência para aumentarmos a consciência de outros que dependem de nós ou contam com a nossa ajuda para atravessar tempos realmente difíceis.

 

Harry Athwal, o cidadão britânico que permaneceu ajoelhado no chão ao lado do rapazinho australiano em agonia, foi outro que deu um testemunho admirável de coragem e humanidade. Julian Cadman, o rapazinho em estertor acabaria por morrer, mas não morreu sozinho porque Harry Athwal se recusou a deixá-lo. Apesar do caos e dos avisos dos polícias que berravam e faziam gestos imperativos para que todas as pessoas saíssem rapidamente da rua e procurassem abrigo, ele desobedeceu e arriscou. Teve medo que os terroristas voltassem, claro, mas ficou firme ao lado de uma criança ferida de morte que podia ser o seu próprio filho.

 

“Estava inconsciente, tinha a perna dobrada e saía muito sangue da cabeça. Passei-lhe a mão pelo cabelo e lavado em lágrimas decidi que tinha que ficar com ele, sentei-me ali, não podia deixar aquele menino sozinho no meio da rua. Parecia-se com o meu filho, era mais ou menos da mesma idade”, contou depois. O rapazinho australiano tinha 7 anos, a mesma idade do seu filho. Aliás, Harry Athwal estava em Barcelona com a família para celebrarem o oitavo aniversário do seu filho.

 

Se somarmos a estes dois exemplos do momento outros tantos como o recente diálogo de Angel e Brandon, pai e filho, depois dos atentados de Paris (sobre o poder das flores e das velas por oposição ao poder das armas) percebemos que testemunhos como estes comovem e movem o mundo. Interpelam pelo tom pacifista, pela acção humanista e pelo espírito visionário, revelando o poder de minorias absolutamente minimais. Basta uma pessoa e um gesto para toda a realidade se alterar. Os acontecimentos não mudam, é certo, mas a percepção que temos desses mesmos acontecimentos pode converter o olhar e resgatar a confiança na humanidade.

 

Nos tempos que correm e perante os factos, vale a pena voltar a autores como Viktor E. Frankl, o médico que sobreviveu a quatro campos de concentração nazis e escreveu um dos livros mais lidos e debatidos de sempre (ensinado nas melhores universidades do mundo como exemplo de liderança e resiliência) para perceber que no auge do sofrimento e desespero é possível sobreviver pela esperança. E focar nos pequenos gestos das poucas pessoas que fazem a diferença nos momentos de grande sofrimento e privação. A bondade humana pode encontrar-se em todos os lugares e até onde e quando menos se espera. Há provas disso e as evidências estão à vista.

 

Apesar de haver sempre exemplos de humanidade é muito difícil focar na bondade dos homens quando tanta coisa à nossa volta e nas notícias parece nascer da perversidade humana. Uma perversidade altamente tóxica, mas também altamente contagiante, que leva demasiada gente a exacerbar sentimentos negativos, a querer expulsar demónios e a responder à maldade com maldades ainda maiores. Não é fácil lidar com o mal nem educar para o bem. Não é óbvio ensinar a construir quando tantos aparecem só para destruir.

 

A lógica do ‘fazes mas pagas’ vai-se instalando e tem expressão nos círculos que nos são próximos, sejam profissionais, sociais ou familiares. Os pais, professores, educadores e psis (psicólogos e psiquiatras) têm cada vez mais dificudade em ajudar a separar o trigo do joio, em recuperar a confiança e manter a esperança dos que se sentem perdidos ou abatidos. Os exemplos positivos abundam, mas os negativos superabundam e nem sempre se consegue limpar o olhar sobre os acontecimentos. Em todo o caso e porque há e haverá sempre homens e mulheres capazes de nos surpreenderem nas piores alturas, estou inclinada a acreditar cada vez mais na lendária máxima de Nietzsche, quando dizia que “aquilo que não me mata, torna-me mais forte”.

 

Vendo e revendo os exemplos actuais que emergem nos escombros, também eu sou obrigada a repetir para mim mesma que tudo o que não nos destrói, constrói-nos. Constrói e reforça em nós a capacidade de acreditar que nem tudo está perdido e que nenhum terrorista tem o poder de matar a esperança.

 

[©Laurinda Alves | Observador]

Artigos de opinião publicados no Observador

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