Dá-nos hoje o nosso salmo quotidiano
De facto, Leonemenino frágil de seis anos protagonista do livro desde o título, configura-se progressivamente como o retrato do perfeito sujeito que reza, mesmo nas características da sua personalidade tão germinal de cristão muito maduro, ainda que de viés. Nele, sem hesitação, podemos ver encarnado o ditado de Cristo: "Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no reino dos céus." (Mateus 18,3-4).
Se quisermos ficar na tradição judaica, a esse menino imerso no vazio humano e espiritual da sua família um pouco torta (excluindo a sua verdadeira 'mestra' e mãe de fé, a avó) seria aplicável a definição que era dada ao rei David, considerado o autor dos 150 salmos bíblicos: "ele não dizia orações, ele mesmo era uma oração".
E é por isso que o pequeno Leone irradia a respiração contagiosa da oração, tanto que em torno dele, na sua pequena casa, uma multidão se aglomera: "rezavam e naquelas orações encontravam a paz". Mas, para voltar a David - "aquele... foi o régio cantor do Espírito Santo..., sumo cantor do sumo guia", como Dante o exalta no Paraíso (xx, 37-38; xxv, 72) por causa da atribuição fictícia a ele do inteiro Saltério - nós gostaríamos de propor aquele grande compartilhamento da oração judaica e cristã, ainda hoje fundamental, constituída pelos Salmos. No original hebraico esses cantos de oração, suspensos entre as alturas da contemplação divina e da poeira e até mesmo a lama das misérias, dos sofrimentos e das culpas humanas, assomam 19.531 palavras, em grandeza é o terceiro livro do Antigo Testamento depois de Jeremias e Génesis.
Precisamente por causa do seu género literário que entrelaça em si culto e poesia, oração e vida, espiritualidade e música, fé e lírica, é necessário, para poder desfrutar do Saltério, ter um guia policrómico que compreenda a análise filosófica e o aprofundamento teológico, mas que também seja capaz de permitir que exale o perfume do canto, bem como descobrir as suas raízes humanas feitas de risos e lágrimas, de eventos históricos nacionais e de situações pessoais nem sempre exaltantes. É isso o que soube alcançar com seu comentário imponente, mas construído de explicações suaves e fascinantes, Ludwig Monti, monge da conhecida comunidadede Bose, que este ano comemora os cinquenta anos de história. A leitura é, assim, conduzida por ele com toda a instrumentação exegética e com um invejável aparato cultural. No entanto, aquelas 150 composições são, acima de tudo, oração, "um canto de oração para cada dia e para todos os dias", como sugeria o filósofo místico Abraham J. Heschel.
E é por isso que - na linha do pequeno Leone– que elas aspiram tornar-se fé e carne, espiritualidade e humanidade. Como o protagonista do romance de Mastrocola que reza também pela mãe doente de um colega ou pela vitória desportiva da sua equipa da escola, assim os Salmos bíblicos levam a Deus não só a alta contemplação da criação como palimpsesto da sua mensagem, mas registam também um ataque de febre que faz os ossos tremerem ou uma falta de apetite que torna a comida com gosto a cinzas ou a amargura de uma derrota de Israel. É, portanto - como explica Monti orientando o leitor nos versos das súplicas ou dos hinos, das meditações ou dos salmos de confissões - todo o ser humano que reza, é a respiração da alma, tão necessária como a da garganta (curiosamente, em hebraico "alma" e "garganta" são expressas com uma única palavra, nefesh) para não morrer, como declarava Kierkegaard.
Mas o crente, cantando o Saltério, percebe ter ao seu lado não só a humanidade e o povo bíblico, mas também Cristo e, com ele, a Igreja, que desde sempre canta justamente esses cantos na sua liturgia. Se quisermos usar uma palavra deslumbrante adotada por TeilharddeChardin, poderíamos dizer que, através do comentário de Monti, consegue-se não só a teofania, ou seja, a revelação do divino presente naqueles cantos, mas também a "diafania", ou seja, a transparência do humano. É por isso que uma testemunha insuspeita como Nietzsche afirmava que "entre o que nós sentimos na leitura de Píndaro e Petrarca e a leitura dos Salmos existe a mesma diferença que entre uma terra estrangeira e a terra natal."
E uma vez que abrimos uma fresta no horizonte luminoso - ainda assim percorrido pelos arrepios da escuridão – da oração, também adicionamos um livrinho essencial, escrito por outro importante exegeta, o suíço DanielMarguerat. O título ecoa um dos lemas tradicionais que mesmo aqueles que já deixaram de ser crentes ainda têm no ouvido, se na sua adolescência frequentaram alguma escola católica: A oração vai salvar o mundo, ditado similar ao mais inflamado: "Quem reza salva-se; quem não reza é condenado". Na verdade, é somente Deus que pode redimir essa estropiada história humana, mas - como o autor observa - "é justo que o mundo deseje ser salvo e orar é deixar que Deus venha a nós e opere em nós a salvação." Da mesma forma, é curioso que na Bíblia, que deveria ser por excelência "Palavra de Deus", existam os Salmos, que são justamente invocações humanas, tão humanos – como ressalta Marguerat – que chegam a explodir em sentimentos incendiários de raiva.
Nas palavras do teólogo mártir do nazismo Dietrich Bonhoeffer, aquelas do Saltério são as palavras que Deus deseja ouvir de nós em total liberdade e sinceridade, um pouco como Jób, cujo grito é, na verdade, de oração, e Lutero nesse ponto não hesitava em afirmar que Deus aprecia mais o grito até blasfemo do homem desesperado do que os louvores sóbrios do pacato devoto das manhãs de domingo durante o culto. Marguerat diz muito mais nas suas poucas páginas a partir de um intenso comentário sobre a suprema oração do cristão, o Pai Nosso, na consciência de que "rezar transforma-nos". Wittgenstein garantia que "rezar é pensar sobre o sentido da vida", e os Salmos e Pai Nosso são disso uma confirmação clara.
[©Gianfranco Ravasi | IHU]