Páscoa, por Valter Hugo Mãe
O dia de Páscoa do ano de 2020 terá sido o que mais me enterneceu em todo o período de pandemia. Estávamos ainda sob o efeito assustador inicial, sabíamos quase nada acerca do tamanho do inimigo e tínhamos pouca disciplina de combate, medíamos o futuro por horas, dias, como quem caminha por mato denso pejado de feras. São leões, pensava eu num pesadelo. Como neblina, o vírus estava em toda a parte com as mandíbulas dos leões.
Metidos em casa, havia pouco que nos garantisse o regresso ao encontro e o medo de jamais nos normalizarmos existia. Fechados, nossas conversas eram modos de despedida. Ao telefone, nas redes sociais, o jeito que sobrava era o de quem se despedia, nostálgica e tragicamente. E, para muitos, sim, foi já o fim.
Lembro-me de acordar e escutar os vizinhos a gritarem Aleluia pelas janelas. Foi o dia inteiro assim. Por alguma comoção, alguém se lembrava de assomar à janela e anunciar a ressurreição de Cristo. Na súbita voz, tão breve, e pela verticalidade do prédio acima de mim, nunca vi o rosto de ninguém. A palavra milagrada era em redor, vinha de homens e de mulheres, algo furtiva, e fazia o tempo respirar. Podia ser como um chuvisco de dois segundos que já ninguém testemunhava senão pelo fresco deixado sobre as coisas. A palavra Aleluia caía fresca sobre as coisas.
Não podia haver melhor forma de acreditar em Cristo e viver a Páscoa. Essa forma que independia dos rituais costumeiros e se autonomizava na comoção de cada um. Pela alegria, pela fé, pela esperança de cada um, a Páscoa foi feita e distribuída entre todos. Vi uma profunda beleza nisso. Só vi beleza nisso. Sempre pensei que acreditar em Cristo haveria de ser tomar a sua voz e o seu gesto, muito mais do que assistir à performance de outra pessoa legitimada para o fazer. Todos os genuinamente crentes estão mandatados para a intenção de Cristo. Estão mandatados para se cuidarem nessa palavra e para cuidarem dos outros nessa palavra. A fé é a submissão e é a autoridade.
Este ano chego à Páscoa expectante. O sagrado de 2020 foi deitado pelas mãos de quem não se conteve. Seria perfeito que as tradições se reeducassem para isto: o sagrado deve deitar-se das mãos dos crentes. E só isso é fundamental. Uma Páscoa liberta pela emoção sincera das pessoas.
Talvez não voltemos a viver aquele instante. Talvez nos compita repeti-lo à revelia dos demais. Sei que, ao menos um dia, Cristo foi anunciado sem paramentos nem troféus dourados, foi anunciado sem envelopes nem flores arrancadas de seus pés. Ele foi liberto ao som, no promontório das bocas, o lugar alto da palavra. A melhor Páscoa é a das pessoas que a expõem como alegria, sem temor.
[@CIDADANIA IMPURA]