«Querem heróis?» Olhem para Santo Inácio e padre Ricardo Neves
O país dividiu-se, na semana que passou, a discutir a memória de um homem. Um homem que, com a sua vida, alimentou os sonhos de uns e contribuiu para a morte de outros. Não o quero discutir também. Quero antes, por contraste, celebrar outros que, com a sua morte, continuam a contribuir para a vida de tantos. Faço-o por motivos pessoais (hoje perdoar-me-ão a nota excessivamente pessoal), mas faço-o também por imperativos nacionais.
Neste início de Agosto incerto, encontramo-nos hoje entre o Sábado passado, em que a igreja celebrou Santo Inácio de Loyola, e o Sábado próximo, em que aqueles a quem ele tocou recordarão o Padre Ricardo Neves com saudade. A estes dois homens, que viveram separados por 500 anos, e que gozam de notoriedade tão assimétrica, encontramo-los juntos, com a sua memória e legado, ainda hoje a inspirar a vida de tantos.
Querem heróis? Olhem para o lado, eles estão demasiadas vezes perto de nós, à distância de uma palavra, ao alcance de uma mão aberta.
Posso dizer, sem exagero, que Santo Inácio de Loyola mudou a vida de milhões de pessoas. Não vou discutir a Igreja Católica. Mas onde tantos vêem amarras e prisões, Santo Inácio e os seus herdeiros espirituais mostram Liberdade e alegria. Onde tantos vêem ódio e castigo, Santo Inácio mostra Amor e reconciliação. Como se lê nos seus Exercícios Espirituais, "... se há de pressupor que todo o bom cristão deve estar mais pronto a salvar a proposição do próximo que a condená-la; se a não pode salvar, inquira como a entende, e, se a entende mal, corrija-o com amor." Num mundo tribal, de repúdio e aniquilação do outro, Santo Inácio é um profeta essencial; de empatia e amor.
Já o Padre Ricardo Neves, pároco de Santo António do Estoril, que nos deixou há 6 anos, com pouco mais que 40 anos, pode não ter mudado a vida de milhões, mas mudou seguramente a vida de muitos e tocou a vida de bastantes. Há 6 anos, e durante muito tempo depois disso, fiquei como que mergulhado num paradoxo, entre as tantas palavras que lhe seriam justamente dedicadas e a simplicidade de um "obrigado por tudo" onde coubesse toda a amizade do mundo; como que mergulhado num paradoxo entre a alegria da ascensão ao Céu, para junto do Pai, do meu querido amigo e a profunda consternação – e revolta – de saber que não tornaria a conversar com ele, a rir-me com ele, a chorar com ele e a sentir aqueles inolvidáveis abraços cheios de sentido e transbordantes de amizade. Desde então passei a perguntar-me muitas vezes, cada vez mais vezes: e se for a última vez? Se este encontro, com esta pessoa, for o último? O que é que quero deixar "aqui"?
Vi pela primeira vez o P. Ricardo num Domingo qualquer. Numa altura do ano em que fazia escuro lá fora, e numa altura da vida em que fazia escuro cá dentro. No ambão, debruçado e pouco convencional, estava um padre novo. O Evangelho daquele Domingo reservava-nos as bem-aventuranças. E aquele padre novo fez irradiar uma luz nova que iluminou a escuridão mais interior.
Não soube, nessa altura, quem era, nem como se chamava. Só mais tarde descobri que o P. Ricardo Neves, o novo pároco do Estoril, era afinal o “tal” padre novo. Tive de o ir conhecer. E desde esse primeiro momento firmou-se entre nós uma amizade intensa, e um carinho e uma admiração mútua, que se manifestava a cada novo encontro.
O P. Ricardo punha em cada encontro, em cada coisa que dizia, em cada olhar que nos dedicava, a serena – mas avassaladora e transbordante – presença do Senhor. Para mim, tardiamente formado na fé cristã por Santo Inácio, sua Companhia e sua espiritualidade, o P. Ricardo era um “jesuíta diocesano”: procurava e via Deus em cada coisa.
A nossa amizade foi curta, mas grande; grande, porque era só assim que o P. Ricardo conseguia viver as suas amizades. Dando sempre mais. Guardarei para sempre algumas coisas que partilhámos – desde elogios a reprimendas – e guardarei para sempre a curiosidade insaciável e bondosa com que nos abordava e a curiosidade empenhada e ternurenta com que queria sempre saber dos nossos.
Porque esta é uma história de um herói sem capa, uma história de compaixão, de empatia, de abertura ao outro, de respeito pela diferença e de optimismo no futuro.
Certa vez fez-se convidado para ir jantar lá a casa: “Gostava tanto de vos conhecer a todos, e de vos ver em vossa casa. Olha, podias convidar-me para lá ir jantar!”. Era assim! Um coração aberto, tão à semelhança do Jesus que tanto amou e a Quem tão cedo se juntou. Verdadeiramente interessado em cada um de nós, para lá das apresentações mais ou menos pias, das partilhas mais ou menos sofridas, mais ou menos gozosas, que ocorriam na igreja ou no seu gabinete. Queria conhecer-nos na nossa vida de todos os dias. Como Jesus fazia.
Quando lhe disse, em vésperas do meu segundo casamento – pelo civil, porque não o pude fazer pela igreja – que uma certa “igreja” me ostracizava, repreendeu-me – creio ter-lhe visto, nessa altura, tristeza no olhar – e chamou-me injusto: “Que injusto, Pedro! A igreja ostraciza-te? Eu estou aqui, em tua casa, a comer à tua mesa…”.
Para o P. Ricardo cada um era merecedor da sua atenção especial, crentes ou não crentes; e, por estes, tinha um genuíno e humilde interesse. Certa vez, descendo para o corredor, durante a homilia, olhou para nós; sabia sempre onde cada um dos seus paroquianos se sentava. E com a igreja repleta de gente, sem tergiversar, olhou para um de nós, fixou-a, e disse-lhe “…mesmo quando os nossos itinerários não passam normalmente por aqui, fiquem sabendo que são sempre – sempre! – bem-vindos”. Talvez pedindo desculpa por outras vezes em que a “igreja” não tenha sido tão acolhedora e cujos relatos o faziam sofrer.
Os rostos que há 6 anos vi a chorar e a sorrir, de homens e mulheres, de novos e velhos, de ricos e pobres, de crentes e não crentes, são a marca indelével do seu toque no coração de toda esta sua família. Uma família que sofreu então a sua partida, que sente ainda agora a sua ausência. Já disse, mas repito: este homem mudou a vida de muita gente. Para melhor. Para mais livre. Para mais paz.
Porque é que conto esta história pessoal e invoco, para o efeito, um imperativo nacional?
Porque esta é uma história de um herói sem capa, uma história de compaixão, de empatia, de abertura ao outro, de respeito pela diferença e de optimismo no futuro. Um optimismo feito de diligência e acção individual, incansável, e de vontade de construir mais e melhor. A Santo Inácio é atribuída uma frase útil em todas as circunstâncias da vida: "devemos fazer tudo como se dependesse só de nós, na confiança de que tudo depende de Deus". Derrogo, para os não crentes, a segunda parte da proposição, mas também por isso reforço a primeira: fazer tudo como se dependesse só de nós. Num país tão carente e tão dependente, é fundamental chamarmos a nós os ensinamentos destes homens. Querem heróis? Olhem para o lado, eles estão demasiadas vezes perto de nós, à distância de uma palavra, ao alcance de uma mão aberta.
[©Pedro Gomes Sanches]