Emanuel. Quem é este menino?
Chamava-se Emanuel, que significa “Deus connosco”. Nasceu a 25 de dezembro, num estábulo em Belém, na Palestina. Pouco depois, foi visitado por pastores, por três reis magos, que só conseguiram achar o local porque foram guiados por uma estrela. Levaram-lhe ouro, incenso e mirra. Quando chegaram também lá viram, além de José e Maria, um boi e um burro, a ladear a manjedoura, onde a criança foi colocada sobre palhinhas.
Como foi o parto de Maria? Quantas horas demorou? Quem foram as parteiras, se as houve? Com quantos quilos nasceu o Menino? Com quantos centímetros? Chorava muito ou pouco? Era sossegado ou irrequieto? E quanto às fraldas, o que sabemos? Todas estas perguntas (e tantas outras) ficam sem resposta por uma simples justificação: nada disso é importante para o desfecho da história. E a história de Jesus Cristo é, no mínimo, peculiar. Desde logo porque se conta ao contrário. De trás para a frente. Começa na morte, porque, teologicamente falando, foi por ela, e a partir dela, que a verdadeira vida começou.
Simplifiquemos. Se fosse hoje, a notícia no jornal seria certamente assim: Homem morreu crucificado, mas os amigos garantem que ressuscitou. E só depois de se explorar este acontecimento único se iria querer saber a origem do dito homem. Foi, aliás, o que aconteceu. Os Evangelhos, que mais não são do que um conjunto de relatos sobre a vida de um homem, escrevem-se após a ressurreição. É assim que se espalha a palavra, que o cristianismo nasce, que Roma se converte e com ela todo o império. A própria data do Natal foi fixada a 25 de dezembro pelo imperador Constantino. E, atrelado, vem tudo o resto. “A fé dos cristãos começa aí. O anúncio da ressurreição é o princípio de tudo e as narrativas crescem desde aí até à origem. Faz-se o caminho inverso.
Portanto, o nascimento de Jesus é das últimas coisas a serem escritas do Novo Testamento”, refere o cónego Jorge Teixeira da Cunha, teólogo e professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa, acrescentado que mesmo esses relatos nos dizem muito pouco. “O que conhecemos dos Evangelhos acerca da infância vem de Lucas e Mateus. Lucas terá tido algumas fontes. Dizem que contactou com a mãe do Senhor. Que tê-la-á acompanhado na sua velhice. Por isso, a fonte de Lucas é bem capaz de ser a Virgem Maria. Já Mateus tem uma visão mais teológica. Nós não sabemos praticamente nada sobre a infância de Cristo. Não sabemos, digamos, com a mesma certeza histórica o que sabemos acerca do Cristo adulto.”
Ora, se pouco foi escrito sobre o nascimento do Menino Jesus, como é que chegamos ao presépio e ao estábulo? À manjedoura, ao boi, ao burro, aos pastores, aos reis magos? Porque existem todas estas narrativas fantásticas sobre a infância de Emanuel? “Porque o povo de Deus teve curiosidade em perceber as origens do Cristo. Se os evangelistas diziam ‘este homem era incomparável’, então ele tinha de ter tido uma origem incomparável. Esse é o paralelo. Se morreu como o mais abandonado dos homens, teve de nascer como o mais excluído dos homens, não havia lugar para ele na hospedaria, só no estábulo. E debaixo dessa roupagem de pobreza, de indigência e de exclusão, aquele ser humano era a origem de tudo. Por isso, os reis magos, os sábios deste Mundo, vieram inclinar-se diante da criança do presépio. Uma narrativa também construída para mostrar que aquilo que soubemos depois já era real desde o nascimento.” E assim ganham forma os muitos contos fantásticos ao longo dos séculos. À luz daquilo que se sabia sobre Jesus e o tempo em que terá vivido. À luz da interpretação que a religião, a sociedade e até a própria arte lhe vão dando.
Ana Cristina Sousa, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ensina precisamente sobre a iconografia do presépio. Corrobora que a alavanca das narrativas atuais reside na curiosidade dos crentes. Assim, foi-se tornando importante “mostrar” como nasceu o Deus Menino. E, nesse sentido, o que contribuiu para a construção de uma iconografia, no caso da arte, foi “o aparecimento de inúmeras lendas e narrativas diferenciadas que têm como objetivo dar pormenores de um nascimento que os evangelhos canónicos não davam”. É aqui que entram os chamados evangelhos apócrifos, que não sendo reconhecidos pela Igreja, “tiveram um grande impacto na difusão de histórias e lendas relacionadas com figuras sagradas, que eram contempladas nos quatro evangelhos reconhecidos”. Destacam-se dois em particular: o Proto-Evangelho de Tiago, escrito em meados do século II d.C; e outro de finais do século V, que se designa como o Evangelho do Pseudo-Mateus, cujo nome real parece ser “O livro sobre a origem da bem-aventurada Maria e da infância do Salvador”.
“São textos importantes que contribuem para a construção de cenários dos quais nada se conhecia”, esclarece a professora de História da Arte. Por exemplo, no Evangelho de Proto-Tiago fala-se de uma gruta, por isso, na Idade Média, era comum o nascimento de Jesus ser representado numa gruta ou numa caverna. Já o Evangelho de Pseudo-Mateus corporiza e eterniza as imagens do burro e do boi junto à manjedoura, mas também o relato da viagem durante a fuga para o Egito.
Fernando António Baptista Pereira, presidente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, recorda que a natividade é um dos temas mais representados na arte desde a Idade Média. “O dia de Natal sempre se revelou fascinante desse ponto de vista.” Mas chama a atenção para dois períodos marcantes, que distinguem o modo como a religião, a história e a arte olham para o assunto. O primeiro começa no século V e estende-se até ao XIV. “Nessa altura, Maria aparece quase sempre deitada nas imagens, como parturiente, e o menino enfaixado junto a ela.” Algo que para a maioria dos portugueses será estranho. “É só no início do século XV que surge aquela imagem que todos veneramos: o Menino Jesus nu, em cima de uma manjedoura, ou por vezes no chão, rodeado de anjos e com Maria, sua mãe, ajoelhada.” Qual é a razão desta mudança? “As visões de uma mulher, Santa Brígida da Suécia, que relatou ter visto em sonhos o nascimento do Menino. Ou melhor, não o chega a ver. Acontece que a criança, na hora de vir ao Mundo, apareceu miraculosamente à frente de Maria. Como se o bebé tivesse saído dela sem um parto normal, e isso marca a iconografia da natividade até aos nossos dias. Se por um lado se confirma o nascimento de uma criança, por outro mostra-se que não era um bebé como os outros, é o filho de Deus, logo já nasceu Deus também, logo o seu nascimento foi miraculoso.
Ana Cristina Sousa aprofunda o tema para tocar num ponto essencial: o Menino Jesus veio ao Mundo com uma missão. “Santa Brígida da Suécia, nas suas visões, falava com Nossa Senhora. É através dela que observa o nascimento. A Virgem diz-lhe, inclusive, que o Menino é de uma beleza única, o mais formoso, a mais bela das criaturas, mais brilhante do que a própria luz, que o seu corpo é limpo e imaculado, sem impureza.” Tal descrição muda a forma de se olhar para o nascimento, que de certa maneira, passa a ser mais mística. Por isso, todos se prostram perante a criança. A própria Mãe o faz. “Isso significa que se afirma que quando o Menino nasce, nasce a glória de Deus, é Ele a boa nova, o que traz paz à Terra, a salvação, o que vai redimir o pecado dos homens”, detalha a docente da Faculdade de Letras do Porto. Acrescentando outro ponto basilar. “Este tipo de representação procura suscitar nos observadores uma grande ternura e um grande envolvimento no episódio. E, ao mesmo tempo, obrigar à reflexão dos próprios fiéis: quem é aquela criança? E nesse instante gera empatia, amor e ternura, mas também quer passar a mensagem de que aquele ser tão pequenino é importante.”
Outra curiosidade iconográfica é que, antes disso acontecer, até ao século XIII sobretudo, o Menino raramente tinha aspeto de bebé. Por não ser uma criança comum, era pintado como se fosse um pequeno homem. Uma forma engenhosa de apresentar a ideia de perfeição do filho de Deus desde o nascimento. Aquele que veio ao Mundo já plenamente formado, sem precisar de sofrer grandes alterações para chegar à idade adulta. É daqui que surgem representações como a Madonna de Crevole, de Duccio di Buoninsegna, em que o Menino tem os traços típicos de um homem, mas no corpo de um bebé. E, propositadamente, aparenta calvície.
D. Carlos Azevedo, bispo, historiador de formação e membro da Academia Portuguesa de História, além de delegado dos comités pontifícios para as Ciências Históricas e para a Cultura, aborda essa representação primitiva do Menino no seu livro “Estudos de iconografia cristã”. À NM relembra que a dimensão artística do Menino e da natividade em si sofreu uma grande evolução. Basta olhar para os muitos meninos enfaixados, dentro de grutas, no século IV e para os muitos outros que se lhe seguiram. “A arte refletiu sempre o pensamento de cada época. Hoje temos uma variedade de Meninos Jesus na Arte que dormem sobre a cruz, enfaixados como numa mortalha, que são visitados por anjos que lhes levam uma esponja e uma lança, como que já aí a fazer alusão à redenção. Por vezes, o próprio berço é decorado com pregos e espinhos. Também temos Meninos Jesus com um crânio na mão, o Menino Jesus ressuscitado com estandarte.” Há uma forte projeção da paixão no Natal. “Mais raro são os Meninos Jesus eucarísticos, que nascem na Idade Média e ‘vivem’ no Sacrário, por vezes até vestidos de sacerdote.” Por último, o bispo português alude ao Menino Jesus, rei do Universo, com uma coroa na cabeça, um globo sobre uma das mãos ou um ceptro. Tal como o Menino Jesus de Praga (República Checa), o mais internacional que se conhece. Muitas vezes, além do globo, tem a particularidade de fazer um gesto que D. Carlos Azevedo faz questão de esclarecer o significado. “Sempre que o Menino tem a mão erguida, com dois dedos levantados, não está a abençoar, é um gesto de orador. Está a falar, é o Verbo que encarnou.”
A História conhece assim, com clareza, duas formas de ver este bebé, que a partir da Idade Média assume, mais claramente, a imagem de um recém-nascido e que se torna mais comum a partir do século XIII e tem, obrigatoriamente, de ser entendida à luz das transformações artísticas que se fazem sentir nessa altura, com a crescente corrente artística do gótico, que procura ser mais naturalista na representação. O que leva a que o Menino e Nossa Senhora sejam apresentados como figuras mais comuns, mais próximas dos fiéis. “E o presépio torna-se mais narrativo, quando, nas épocas anteriores, tinha um objetivo mais pedagógico, procurava ensinar e deixar uma mensagem teológica”, aponta Ana Cristina Sousa.
A humanização das figuras sagradas
Outra questão interessante, que se afirma a partir desta cronologia, é a humanização das figuras sagradas. O que querem ver os fiéis? “O amor de uma mãe por um filho. Por isso Maria é representada como uma mãe que estreita o filho nos braços, que pega nele, que o tem no colo, e este Menino torna-se também humano, um bebé concreto, recém-nascido. O mesmo acontece com São José, que a partir do gótico vai-se afirmando, passando a ter um papel ativo, ajusta a almofada nas costas de Maria, traz comida, uma sopinha.” E nesta cultura mais humanista procurou-se tornar estas figuras sagradas muito mais reais, concretas, próximas das vidas dos fiéis. Assim se explica por que, nos finais da Idade Média, os presépios tendem a incluir outras figuras: os pastores, os próprios reis magos, que se juntam à presença do boi e do burro da tradição paleocristã.
O primeiro presépio vivo do Mundo é atribuído a São Francisco de Assis. Em 1223, em vez de festejar a noite de Natal na Igreja, o clérigo levou o povo para a floresta da cidade de Greccio, em Itália, para onde mandou transportar uma manjedoura, um boi e um burro, para melhor explicar o Natal às pessoas comuns, camponeses que não conseguiam entender a história do nascimento de Jesus. O povo pôde assim entrar no mistério da Encarnação de uma forma totalmente nova.
“Querendo suscitar a adoração das pessoas ao presépio, São Francisco torna-se um grande impulsionador da sua representação”, salienta o professor Fernando António Baptista Pereira, presidente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. E o costume espalhou-se pelas igrejas, mosteiros, e casas da Europa. Em 1567, a duquesa Amalfi mandou montar um presépio que tinha 116 figuras. Esse rito de “encher” a cena da natividade acabou por dar forma aos os presépios napolitanos. “Repletos de figuras, tradição herdada pelos portugueses e que tem o exemplo máximo no presépio de Machado de Castro, na Basílica da Estrela, em Lisboa, no qual, além dos reis magos, há pastores, e uma série de profissões, montanhas e cidades. Não faltam exemplos de representações extremamente povoadas”, realça o professor. Algo que prevaleceu e que está na origem do hábito de fazer o presépio que ainda hoje se encontra nas nossas casas e nas igrejas. E tudo começou por ser um hábito teatral para as pessoas entenderem o que foi o nascimento do Cristo e a sua importância.
A propósito destas “novas figuras”, o historiador Joel Cleto alude ao livro que o Papa Bento XVI escreveu pouco antes de resignar: “A infância de Jesus”. Em que assume, muito por causa dos pastores que nessa época, como nos dizem os relatos, desceram dos montes para adorar o Menino, que dificilmente esta criança nasceu em dezembro. “Os pastores não andam no alto das montanhas no inverno. O que significa talvez que se eles estiveram presentes é porque Jesus terá nascido numa época mais amena. Por aí podemos ver que este nascimento a 25 de dezembro serviu para cristianizar uma das maiores festas pagãs, a entrada no Solstício de Inverno, um acontecimento importante para o homem do pagus, que em latim significava campo. Convém lembrar que só a partir do ano 313, graças ao Édito de Milão promulgado por Constantino, o culto cristão passou a ser permitido em todo o Império Romano. E que só no ano de 384 esta se torna a religião oficial de Roma. Depois disso, a Igreja passou a designar “pagão” a todos aqueles que não tinham sido batizados. Mas os pagãos não eram um povo à parte. Eram cidadãos romanos que viviam na zona rural. Tinham uma relação mais estreita com a Natureza, e prestavam-lhe homenagem. Ao vento, ao sol, à água, ao fogo e a tudo o que fosse necessário para garantir a sobrevivência diária, como o êxito das colheitas e a fertilidade dos animais. E os solstícios marcavam assim o ritmo anual das estações, o tempo de agradecer e pedir. “Passa a ser uma questão simbólica o facto de Cristo ter nascido nesta altura, que assinala o início do crescimento dos dias. A partir de 25, que é o dia mais curto do ano, a luz triunfa sobre a noite. Dificilmente se arranjaria no calendário outra data com este simbolismo”, destaca Joel Cleto.
Ana Cristina Sousa complementa. “De facto, a escolha desta data não é gratuita. Primeiro por ter de haver um dia do nascimento, e só em meados do século IV é que é definida essa data. E, por outro lado, foi a forma do cristianismo incorporar uma festa pagã, afirmando Jesus como o verdadeiro sol. Uma vez instituída, conhece logo uma difusão rapidíssima no Oriente e no Ocidente.”
E por falar em simbolismo, toquemos num tema sem concordância: a aparência do Cristo. Joel Cleto é perentório: “Convenhamos, Jesus não seria loiro, de olhos azuis. Seria moreno, de olhos escuros. Essas representações têm uma forte influência da arte do norte da Europa. Do ponto de vista iconográfico, muito da imagem que temos vem da pintura flamenga”, que se focava no Belo.
A professora de História da Arte Ana Cristina Sousa defende outra tese. E volta às visões místicas para a explicar. “A tez clara do Menino Jesus, acentua-se no século XIV depois das revelações de Santa Brígida. A partir da Idade Média, o Menino deixa de ser representado na manjedoura e é colocado no chão, indefeso, deitado sobre umas palhinhas, como nos conta a música: ‘Nas palhas deitado, nas palhas estendido’. Esse tipo de canções são herança do teatro sacro medieval, é representado no chão, deitado por vezes sobre o manto de Nossa Senhora e repleto de luz, com esta ideia de que esta criança, que é filho de Deus, é mais brilhante do que a luz. Por isso, a brancura da pele e a imagem ternurenta do seu aspeto físico, os caracolinhos de ouro, como também está refletido no cancioneiro popular.”
Uma representação espiritual, não étnica
Assim, garante a docente, não se trata de uma representação étnica, mas espiritual. “Ele é luz, por isso, só pode ser representado com esta brancura. Nunca se discutiu o tom de pele do Menino de Jesus. As perguntas que hoje fazemos refletem questões do nosso tempo. E este menino representa a construção de ideias, resulta de séculos de tradição, porque nós não fazemos ideia de como ele era quando nasceu. O seu aspeto é um resultado absolutamente imaginário. De imaginações adaptadas às histórias, à cultura, às devoções.”
E hoje? “Hoje estamos de novo num tempo de redução da fantasia, de regresso às origens, a uma representação muito menos elaborada. Os artistas de hoje são principalmente adeptos da concisão, da geometria. De certo modo, procuram recuperar o tempo, o espaço e a forma. Porque somos hipercríticos. Por outro lado, esta nossa época é muito virada para a estética, queremos viver, mas vivências interiores”, argumenta o cónego Jorge Teixeira da Cunha.
Talvez a pandemia tenha contribuído para isso. “Sim, mudou-nos muito, é certo. Fez-nos regressar a casa, ao núcleo da nossa vida. Veio concentrar-nos de novo na vida doméstica e a Igreja talvez tenha de viver um pouco isso. As pessoas deixaram de ir à igreja e começaram a viver mais interiormente.” E a representação do presépio e do Menino Jesus continuam a ser símbolos eternos dessa interioridade. “Pouco visível, porém inesgotável. Tal como o cristianismo continua a ser um fenómeno essencial do Mundo.” Um Mundo para o qual convergimos, muitas vezes sem saber. O Natal é disso espelho. “Por ser a festa da consolação, da experiência, da proximidade, do encontro com o que é básico, ligada às coisas essenciais da vida. À maternidade, à paternidade, à filiação, à origem, à casa doméstica, à reunião de família.” Es o que é que nós somos, senão tudo isso?
[por FILOMENA ABREU]