A economia de Francisco
Na receção a Francisco que aconteceu na Universidade Católica, a Prof. Isabel Capeloa Gil anunciou a criação e uma nova cátedra a que deu o nome de Economia de Francisco e Clara.
Os menos dados às coisas da Igreja poderão ter pensado que se tratava de estudar o pensamento do atual Bispo de Roma, mas não é de todo assim.
A Economia de Francisco é a de Francisco de Assis, uma visão do mundo de hoje a partir de uma grandeva leitura das suas circunstâncias. Em boa verdade, ela é fundada numa visão de mundo a partir do Cântico das Criaturas, onde o universo e a terra, com os seus elementos fundadores, se assumem no abrigo da bênção do Senhor.
Ao contrário do que aconteceu ao longo do último século, estas proclamações da Igreja sobre sociedade e economia não partem do sucessor de Pedro, mas são trabalhadas por este a partir de uma outra dimensão filosófica e teológica.
Há, contudo, uma pergunta que interessa fazer antes de uma abordagem ao que pode ser a Economia de Francisco e Clara. Quem é Clara que se lhe junta para construir um outro passo na leitura do mundo?
Clara foi a fundadora do ramo feminino da Ordem Franciscana, as Clarissas. Sendo bela e nobre, abandonou a vida de privilégios para se dedicar às pobrezas, em matéria e em espírito.
A Universidade Católica consagra Clara a esta nova Economia numa relação entre a riqueza de onde se vem e a pobreza que se ambiciona. Mas é meu entendimento, porque a academia nunca se lança sem fundamentos vários, que aqui Francisco de Assis e Clara se afirmam no mundo hodierno em que homem e mulher caminham em igualdade, em que o papel de cada um se afirma sem diferenças. É também este, para mim, o sentido do pontificado de Francisco Papa, mais do que uma mera atualização do pensamento de Francisco Santo.
Mas o que é, em boa verdade, a Economia de Francisco e de Clara?
Não é uma doutrina ou um manual, não é uma obrigação muito menos dogma, não é um programa político nem um panfleto reivindicativo. Se quisermos é uma incitação que assenta num decálogo próximo deste que aqui indico:
Os bens comuns (1). A partir da Fratelli tutti e da Laudato si, a Economia de Francisco e Clara afirma a natureza não privada dos bens, a obrigação da sua disponibilidade para todos, a distribuição equitativa dos resultados. Não se trata, como muitos dizem, de uma afirmação pela estatização da vida social e económica, até porque nega os totalitarismos, mas da necessidade de uma intervenção do tal ente chamado Estado, em ligação com as diferentes manifestações da sociedade, para a construção de uma sociedade justa.
O desenvolvimento integral (2). Também a partir da Fratelli tutti, em ligação a Caritas in Veritate de Bento XVI, se desenvolve o cuidado da criação, toda a criação com a sua beleza e diversidade. O papel do homem na sua relação com os outros animais ganha aqui uma bondade crescente, a natureza que os acolhe constitui uma exigência filosófica e política de cada uma das sociedades. Mas é também aqui que encaixam as repulsas pelas leituras coloniais, fundadas em passados de imposições ocidentais, e a obrigatória aceitação do direito dos povos a seguirem o seu caminho.
A dignidade que leve à ecologia integral (3). Todas as exteriorizações programáticas de Francisco Papa, assentes nos princípios de Francisco Santo, refletem os equilíbrios, a fortificação da relação entre seres, a valorização do respeito pelo diferente numa obrigação de dar espaço para que os elementos vivos continuem vivos. Mas não é nova esta abordagem. Bento XVI tinha iniciado o caminho com a publicação de “Dez mandamentos para o Meio Ambiente”, reforçou na sua mensagem do Dia Mundial da Paz em 2010 a que deu o título “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação” e consolidou em 2012 em “O meio Ambiente”.
O combate à economia de poucos (4). A partir de Evangelli Gaudium, Francisco Papa vai mais longe do que João Paulo II. O papa polaco, marcado como estava pela vida e pelo tempo, dizia que havia mais formas de realizar a economia do que o capitalismo. Francisco não nega a economia social de mercado, mas lidera a luta contra o capitalismo sem alma que faz do Homem um escravo, que cria centenas de milhão de pobres quando a tecnologia e os recursos financeiros existentes teriam condições para eliminar essa pobreza.
A economia ao serviço da vida (5). É aqui que entra a palavra Todos que ainda está nos nossos ouvidos desde a JMJ de Lisboa. O mundo diverso é o mundo acolhido, sem preconceito, sem acusação, sem medos. É o mundo onde não há cores, estratos, classes, maiorias e minorias, opressores e oprimidos, o mundo em que homens e mulheres assumem o seu papel de responsabilidade igualitária contribuindo com a sua realidade genética. É o mundo da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, é o mundo da justiça cega e da comunicação social assente na verdade e na não condenação. É a referência inserta no “Pacto para a Economia entre o Papa Francisco e Jovens” onde se diz: “Uma economia onde o cuidado substitui a rejeição e a indiferença; uma economia que não deixa ninguém para trás, a fim de construir uma sociedade na qual as pedras rejeitadas pela mentalidade dominante se tornem pedras angulares”.
As periferias como ponto e partida (6). É aqui que se afirma a revolução cristã dos marginalizados. Não a substituição de uma ditadura política por uma ditadura económica, sim a construção de uma vivência comunitária de partilha. As generalizações da mensagem, o cuidado de cada realidade com as suas vivências e caminhos próprios, a aceitação e vida com estádios de desenvolvimento diferenciados, não podem ser opção nem motivo para imposições civilizacionais, mas devem ser a melhor observação do mundo de diferentes.
A interligação das lutas (7). As lutas pelo ambiente em todas as suas derivações, as lutas pela distribuição justa dos recursos, as lutas pelo combate às doenças, as lutas contra a desalmação dos povos, as lutas pela identidade, as lutas contra a supremacia dos detentores da tecnologia, as lutas contra a construção do homem-robô, as lutas pela liberdade e pela democracia onde cada pessoa vale tanto como a outra, todas estas lutas se fazem de braços dados, de caminhos interligados, todos guiados “(…) por uma ética da pessoa sempre aberta à transcendência”.
A educação e a cultura como base (8). O conhecimento do nosso eu local, a garantia da razão de sabermos de onde partimos, a desgraduação da enormização e elitização da História, a construção de modelos universais de educação que permitam a partilha de vidas boas e más, fúteis e profundas, a construção de planos de conhecimento que não partam das estatísticas que medem o que é diferente com a inanidade dos números. A cultura onde todos cabem, onde a inteligência recusa o absurdo e a comunicação respalda ao impedir os extremos.
A nossa casa como espaço de acolhimento (9). A negação do acessos aos bens dos que não têm rosto, a negação de consumo de produtos que resultem de ciclos longos, a valorização do papel da criação e a contemplação da terra/jardim, o despojamento que impede a acumulação, o combate ao plástico enquanto praga do século. O reganhar da vida do Homem com os animais, uma visão da realidade do outro que não seja beneficiadora do turismo massificado que transforma as cidades em parques zoológicos.
O papel das novas gerações (10). Levar a vida espiritual a quem aprende a negá-la, acolher quem sempre foi marginalizado, dar mais do que receber, chorar e rir sem que nisso haja um preço, caminhar rumo ao anoitecer na praia, rumar ao rio de onde se olha o céu, sentir que este sítio onde nos colocaram pode ser tudo o que há de melhor sem que para isso haja qualquer pagamento. Fazer das crianças pés descalças na rua, criadores de jogos e contares que lhe façam memórias. Construir uma vida de mínimos materiais e de máximos de realização.
Este decálogo, que resulta do meu estudo sobre Francisco Papa, talvez implique com a visão de ilustres académicos (César das Neves, Luis Cabral … ). Para estes Francisco estaria a fazer nascer uma espécie de capitalismo ético, mas isso é completamente falso.
Um Papa que vem dos bairros pobres da Argentina, que é neto de emigrantes, que viveu o lastro do colonialismo, que sabe o que o capitalismo fez de exploração dos países em desenvolvimento, não constrói uma nova leitura da economia a partir de velhos conceitos. É por isso que a Economia de Francisco vai ter, como no passado também teve a Rerum Novarum, muitas interpretações e muitas oposições.
Por agora, Francisco abre a porta com um pé de cabra, entra de rompante e obriga a que os que estão na sala o ouçam com frases simples de inconformismo que ecoam por todos os cantos do mundo. Mesmo não sendo de sua autoria, esta é uma delas: “O único momento em que é lícito olhar alguém de cima para baixo é para ajudar o outro a levantar-se.”