Entrevista ao capelão de Santa Marta: “Na missa queria pessoas comuns"
Entrar no elevador, ir à cantina e encontrar o Papa à nossa frente. Uma figura branca, hierática e distante que se torna um companheiro de mesa, o sucessor de Pedro que dá presentes aos guardas e diz piadas às freiras. Uma transformação que se deu sob o olhar de Monsenhor Tino Scotti, 70 anos, de Cologno al Serio,trinta e um no Vaticano também como chefe da Primeira Secção da Secretaria de Estado. E oito ao lado do Papa Francisco. Tudo começou”, conta, ”porque ele decidiu ficar e viver em Santa Marta, onde eu era capelão das freiras e celebrava a missa na capela às 7 da manhã. E começámos a celebrar juntos. Depois, pouco a pouco, comecei a ir ter com ele todas as noites, das 16 às 20 horas”.
A primeira coisa que lhe vem à cabeça sobre o Papa Francisco.
A sua atenção para com as pessoas, ele chamava-lhe 'proximidade', ou melhor, 'vicinansa', com o seu sotaque. Chegava à missa da manhã com um biberão ou uma compota para um guarda ou uma freira que estava a fazer anos. Gostava do mundo quando podia encontrar as pessoas comuns. Tinha uma sacralidade do povo, apenas no sentido do povo, do ambiente de onde provinha.
Como é que ele expressava isso?
Os cardeais indicavam pessoas importantes, mas ele queria pessoas comuns: políticos, actores. Mas ele queria pessoas comuns. Começámos com o pessoal do Vaticano, três mil pessoas que podiam estar lá há anos e que nunca tinham conhecido um Papa. Demorou meses. Ele cumprimentou-os a todos, um por um. Para mim foi emocionante. Depois continuámos com as paróquias romanas, ele queria sempre saber de todos de onde eram. Teria gostado de ir ter com eles, mas não havia tempo.
Não se sentia admirado na presença dele?
No início foi um problema, não era fácil ter o Papa como vizinho. Na primeira missa com os padres, ele disse: temos de aprender a tolerar-nos uns aos outros. No início foi difícil, havia os guardas, os elevadores com luvas brancas. Mas ele eliminou tudo, os guardas ficaram, mas muito discretamente. Tornou-se normal encontrá-lo no elevador e vê-lo a comer presunto na cantina.
Mas o que é que se diz quando se encontra o Papa num elevador?
É um grande embaraço. Depois aprendemos: boa noite Santo Padre, como está? Ele tinha-se tornado um de nós, preocupava-se. Tomava o pequeno-almoço com um sumo e depois almoçava às 12h30, à hora em que o pessoal comia. Sentava-se com eles e falava de tudo, até de futebol. Não era um tagarela, mas se lhe pedissem, dizia o que pensava com grande franqueza.
Também deve ter os seus defeitos.
Gostava de piadas, mesmo que por vezes alguém ficasse ofendido, porque não se espera isso de um Papa. Por exemplo, as clássicas piadas sobre as sogras. Às freiras que queriam a beatificação do seu fundador, dizia: ele era bom, mas cometeu um erro, o de fundar o vosso instituto. Era também rigoroso, não deixava passar nada. Na missa, se via alguém distraído, dizia: se não estás interessado, vai-te embora. Nunca amou a corte, fez tudo para a destruir e evitar tudo o que cheirasse a cortesania. Tal como não gostava das cerimónias oficiais. Houve um concerto da orquestra do La Scala com muitas pessoas importantes e todo o governo da época, mas o seu lugar na primeira fila ficou vazio. Dizia-se que não se sentia bem, mas a verdade é que não gostava dessas coisas.
Uma simplicidade que transparece também nas disposições testamentárias.
Era natural, ele tinha vivido assim. Tínhamos-lhe feito umas calças brancas, mas ele disse: só as uso se os cardeais as usarem vermelhas. E não se falou mais de calças brancas. Usava-as como as que tinha comprado em Buenos Aires. Era muito rigoroso consigo próprio. Na primeira Páscoa, éramos apenas uns dez à mesa, porque é a altura em que toda a gente se vai embora. Foi um momento bonito, alguns prelados fizeram discursos. Quando chegou a altura de nos levantarmos, ele disse: “Alto, têm de lavar a loiça. Depois não o fizemos, mas ele estava habituado a fazê-lo.
Uma grande diferença em relação às formalidades de Ratzinger.
O Papa Francisco tinha uma grande estima e afeto por ele, posso dizer que o venerava. Mas Bento costumava pôr todas aquelas coisas que um prelado ao meu lado descreveu uma vez como 'faraónicas', porque era muito tímido, o seu secretário preparava-lhas porque gostava delas e não se atrevia a opor-se. Francisco, pelo contrário, dizia-lhe que não, sem grande demora, e pronto. Nunca teve um secretário permanente, porque são figuras que têm demasiado peso. De facto, havia uma certa rotatividade de pessoal, de vez em quando alguém vinha despedir-se de mim porque se ia embora.
Também regressou a Bergamo em 2021.
Tinha grandes problemas de saúde nos pulmões, apresentei-me a ele com o meu carrinho e o oxigénio, disse-lhe que queria ir para casa e ele compreendeu. Pegou num ícone, embrulhou-o, meteu-o num saco e deu-mo. No dia seguinte, acompanhou-me à entrada da casa, foi comovente.
Tinha uma das missões mais difíceis do mundo, que alguém como Paulo VI tinha experimentado com sofrimento.
Ele disse: “Sempre dormi descansado. Assumi esta tarefa com serenidade”.
Sentiu a hostilidade dos tradicionalistas?
Não lhes deu qualquer importância. Era vacinado, tendo vivido como provincial jesuíta durante a ditadura argentina. Uma vez encontrou-se com os lefebvrianos de S. Pio X e disse: o problema destes não é eclesiológico, mas psicológico. Mas ele tinha uma espiritualidade muito profunda, levantava-se às 5 da manhã e rezava durante duas horas, à noite, às 19 horas, sentava-se na igreja e ficava em silêncio durante uma hora. Tinha uma devoção popular, como as de São José e São José. Era um progressista ligado à tradição.
Como será recordado?
Não tanto pelos discursos, mas pelos gestos. O encontro com os presos, os pobres, as crianças, a sua simplicidade de ação e de gestão. Mudou a postura do Papa. Isso vai condicionar também o seu sucessor, porque não haverá outra forma. Foi coerente até ao fim.
[@Bergamo | tradução: iMIssio]